O legado de Paulo Freire na Educação de Jovens e Adultos
Neste ano de 2021 comemora-se o centenário de Paulo Freire, marcado por justas homenagens às contribuições que o autor deixou à ciência e à sociedade em geral. É bem verdade que existem disputas em torno da memória sobre Freire, bem como debates que se estabelecem no âmbito das ciências humanas acerca dos limites e possibilidades de sua obra. No entanto, compreende-se como necessária a reafirmação da relevância do legado de Freire para a educação brasileira, tendo em vista a série de ataques que o educador recebe diante do avanço do pensamento reacionário no Brasil.
Diversos aspectos podem ser pinçados na obra de Freire; porém, sua contribuição à educação brasileira e, em especial, à Educação de Jovens e Adultos (EJA) é um elemento fundamental. Logo, esse breve artigo irá expor uma iniciativa de EJA no âmbito da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) – o Programa Compartilhar – que se relaciona a pressupostos centrais da obra de Freire.
Inicialmente, o Compartilhar foi idealizado como um programa de alfabetização de trabalhadores a partir das perspectivas pedagógicas da educação popular, que tem em Freire um de seus mais renomados expoentes.
A partir do método de alfabetização de adultos desenvolvido pelo autor, o Programa adotou a perspectiva de que a capacidade intelectual de leitura deve estar associada ao entendimento crítico da realidade em que os sujeitos se inserem. Portanto, a leitura da palavra deve acompanhar a leitura crítica do mundo.
O Programa Compartilhar constitui-se, atualmente, de uma iniciativa de EJA da PMPA para garantir a formação escolar básica dos servidores da gestão municipal. Criado em 1989 pela gestão do prefeito Olívio Dutra, foi garantido através da ordem de serviço n.º 033 pela administração de Tarso Genro. O projeto se estruturou a partir da colaboração entre o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e o Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), sob coordenação pedagógica da Secretaria Municipal de Educação (SMED). Assim, servidores passaram a ser liberados dois turnos por semana de suas atividades laborais a fim de concluir sua alfabetização.
O Programa Compartilhar foi responsável pela alfabetização de centenas de trabalhadores da PMPA e, diante dos resultados verificados nos primeiros anos de execução, passou a se estender à formação no ensino fundamental e médio, como ocorre atualmente. Tendo em vista que o Programa se insere na estrutura laboral dos estudantes, garante aos trabalhadores da prefeitura uma formação durante sua jornada diária de trabalho. Esse fator assume um papel fundamental, tendo em vista que um dos principais motivos de evasão escolar se dá pela necessidade de trabalhar. Ou seja, o fato de o Programa funcionar durante a jornada laboral e dentro dos locais de trabalho permite uma maior adesão dos alunos.
Do ponto de vista do trabalho pedagógico, o Programa se organiza a partir da totalidade de conhecimentos, sendo T.1, T.2 e T.3 os anos iniciais do ensino fundamental e T.4, T.5 e T.6 os anos finais – nos quais ingressam as disciplinas específicas que compõem o currículo escolar. No âmbito do ensino médio, o projeto funciona como uma espécie de curso preparatório para as avaliações dos NEEJAs, adotando um caráter mais engessado. No entanto, no ensino fundamental existe uma possibilidade maior de autonomia dos conteúdos abordados por parte dos professores, no sentido de compreender as demandas específicas dos estudantes e entendê-los enquanto sujeitos concretos.
Assim sendo, no ensino fundamental percebe-se uma maior possibilidade de análise crítica da realidade dos próprios sujeitos, contrapondo conhecimentos (educador-educando) e construindo novos entendimentos acerca da realidade, o que Freire, na obra Educação como prática da liberdade define como a construção de uma consciência crítica através de uma relação dialógica. Nesse sentido, pude atuar de 2017 a 2019 como professor estagiário de História no Programa, tendo contato – tanto teórico, quanto prático – com os preceitos freireanos da dialogicidade.
Por meio da dialogicidade na prática docente, foram verificados os conhecimentos apreendidos por esses sujeitos ao longo de suas trajetórias. Também foram apresentados a eles entendimentos científicos próprios da formação acadêmica. Logo, através da superação das contradições verificadas, pode-se elaborar novas sínteses de entendimento da realidade. Portanto, o Programa Compartilhar se estabelece enquanto um espaço de contraposição e construção de conhecimentos e saberes, tanto científicos quanto empíricos.
Por fim, o Programa é permeado por contradições oriundas de concepções diversas acerca do papel da educação. Estas, por sua vez, expressam o conflito dos agentes do trabalho pedagógico (gestão, coordenação e professores) acerca da questão. No entanto, o Programa Compartilhar é marcado por um entendimento de fundamental coesão: a garantia aos estudantes de se deslocarem de suas atividades laborais para se dedicarem exclusivamente a sua formação escolar. Isso permite ao educador atuar no sentido de contribuir com o processo de formação de uma consciência crítica acerca da realidade.
(*) Raul Kich Abreu é licenciado em História pela UFRGS, atualmente cursando o Bacharelado em História. Já atuou como professor de História no Programa Compartilhar da PMPA e atualmente atua como educador social.