O limiar da biblioteca: o uso da IA que chegou para mudar
Se com o avanço dos acervos digitais a biblioteca, instituição física, foi colocada em xeque, a chegada de serviços que usam robôs com Inteligência Artificial (IA) para auxiliar na busca dos usuários e, até mesmo, fornecer respostas precisas com base em levantamentos em bancos de dados infinitos, a biblioteca como conhecemos, com acervo local, prédio, profissional responsável e usuário, chegou ao seu limiar.
Acreditamos que os profissionais que trabalham com a informação, em especial os bibliotecários, estão atentos às discussões recentes sobre o desenvolvimento de serviços eletrônicos de busca que passaram a incorporar o uso da IA. Estes, capazes de auxiliar nas pesquisas, escrever textos e entregar respostas prontas ao grande público. Surgiram os serviços ChatGPT (financiado por Elon Musk), o Bard (Serviço do Google) e o recém-implementado serviço do Bing (Microsoft).
A pergunta que surge: qual o impacto dessas tecnologias para as bibliotecas? O questionamento é amplo porque tal cenário impacta essas instituições de modos diferentes. Para exemplificar, vamos tratar de alguns pontos em dois segmentos: das bibliotecas universitárias e das bibliotecas públicas.
O primeiro: da biblioteca universitária. O recente impacto sentido está na academia e na produção de textos. Seguindo a proposta do ciclo de produção científica, uma pesquisa acontece partindo de uma inquietação, passa pelo uso de um referencial teórico construído por pares e, por fim, é elaborado um pensamento crítico que retorna ao ciclo. Nesse caso, onde está o momento que o pesquisador faz contato com um serviço de busca ou formulação de respostas que utilize uma IA? No momento da busca? Ou no momento de formulação do seu pensamento crítico que resulta em uma nova produção científica? A identificação desse cenário se coloca como um desafio a atender. Atrelado a isso, as bibliotecas universitárias passarão a incorporar em seus acervos registros de produção acadêmica gerados por máquinas. Os bibliotecários não têm a competência, nem é seu trabalho, fiscalizar os conteúdos das obras. Então, será cada vez mais necessária uma análise prévia e criteriosa das bancas avaliadoras para que tais textos possam ser divulgados e que de fato sejam contribuições originais à comunidade científica.
Outro ponto que nos chama a atenção ainda no ambiente da biblioteca universitária (que pode ser expandido para outros setores): o da indexação. A precisão na indexação para identificar os temas e assuntos relacionados às obras é uma das tarefas no qual a análise de conteúdo passa pelo trabalho de um profissional qualificado, que se utiliza de ferramentas como, por exemplo, os vocabulários controlados. É sabido que é possível identificar, por meio de softwares, os termos relevantes que caracterizam uma obra pela quantidade de vezes que eles aparecem nos textos. No entanto, essa tarefa ainda é realizada com maior qualidade quando passa pelo crivo de um ser humano. Nesse caso da indexação, a pergunta que surge: como esse trabalho pode ser realizado em conjunto com a IA? Num exercício de reflexão de uso dessa tecnologia, um sistema com IA pode identificar que um documento possui relações de conteúdo que vão muito além daquelas que foram selecionadas por um profissional e definidos por uma instituição. Além disso, uma IA pode realizar uma indexação orgânica, que ao longo da utilização do documento por diferentes pessoas identifique outras relações e, portanto, apresente novas formas de identificação do conteúdo. Com isso, possibilite de forma autônoma alterar a indexação de uma determinada obra, sem a necessidade da interferência de um profissional.
O segundo seguimento: as bibliotecas públicas. Tal setor é o mais complexo de se pensar quando da ascensão dos sistemas de IA. A principal questão está no fato de que o uso de ferramentas de IA para consulta e encontro de respostas, a chamada “necessidade de informação do usuário”, faz com que a biblioteca pública se afunde num abismo de irrelevância para a sociedade.
Tendo em vista o cenário atual, com a chegada dos computadores, o desenvolvimento da internet e, por fim, dos acervos digitalizados, é praticamente desnecessário ir até uma biblioteca pública para pesquisar sobre determinado assunto. Salvo em casos em que uma obra está esgotada e se encontra apenas em determinado acervo. Em visita recente, janeiro de 2023, à Biblioteca Estadual Parque Villa-Lobos, em São Paulo, instituição modelo no processo de desenvolvimento de serviços que estejam coesos com o público frequentador, é clara observação do mapa de localização dos usuários. O acervo em papel e outras mídias, além das sessões para pessoas com deficiência, encontra-se sem ou com poucos usuários. Enquanto isso, os espaços para uso dos computadores com acesso à internet, a sala de games (cabe destaque a essa inovação) e, até mesmo, o espaço disponibilizado pelo governo do Estado de São Paulo para coworking com uso intenso.
O que estamos vendo é um caminho sem volta no que diz respeito à necessidade de consulta de um acervo físico ou digital de uma biblioteca pública. Parafraseando o professor Luis Milanesi, que na obra O Paraíso via Embratel (1973) indica que houve no Brasil uma transição da população analfabeta para o consumo dos produtos oferecidos pela TV, sem passar pela biblioteca e a leitura, estamos prevendo agora um público que migrará de uma fase de contato dos acervos digitalizados para o uso de serviços de respostas baseados em inteligências artificiais. Com isso, a formulação do pensamento crítico do indivíduo, a sua inquietação pela descoberta, a necessidade de investigação desse universo físico (acervo do passado) ou digital que se afronta aos nossos olhos passa a ser simplificado por serviços formuladores de respostas prontas.
O que cabe às bibliotecas nesse cenário? Novamente, cada seguimento específico deverá tratar as respostas para os seus problemas. O que podemos identificar em comum é a necessidade de que profissionais busquem formas de trabalhar com seus públicos de modo a instigar a capacidade de investigação e o uso dos recursos disponibilizados em cada instituição. De fato, o cenário complexo está para a biblioteca pública. Esta, que já passa por uma crise há anos por causa da fuga de público e, agora, com a realidade premente da compra e disponibilização de acervos digitalizados, que coloca fim à necessidade de ir ao local da biblioteca para consulta. O que vemos é que a biblioteca pública necessita estar atenta às demandas que surgirão com os desenvolvimentos dos serviços com uso das inteligências artificiais. Ela deverá propor ações que sejam inovadoras e que instiguem no seu público a formulação do pensamento que passa pela construção coletiva dos indivíduos.
Por fim, agora em um olhar amplo para os diferentes segmentos de bibliotecas, vemos que esses serviços com o uso das IA, em especial os de chatbot, farão o papel do bibliotecário de referência nessas instituições: o profissional responsável por identificar os problemas de pesquisa dos seus usuários e propor estratégias de busca baseadas nas necessidades de cada um. Tal atividade se tornou fundamental após o desenvolvimento dos sistemas computadorizados. Tarefa das mais complexas, a se pensar que cada indivíduo apresenta necessidades de pesquisa distintas e que os acervos ganharam uma proporção infinita com os conteúdos digitalizados. Como sugestão aos pesquisadores da área das bibliotecas, com destaque para os serviços de referência, fica a proposta de se criar um ChatBot, ou serviço com o uso da IA, que indique as respostas de uma necessidade de pesquisa dos sujeitos e que, ao mesmo tempo, consiga traçar estratégias de uso do acervo da instituição (físico e digital). Ou seja, quais obras, autores e textos compõem aquela pesquisa. Ainda, indicar materiais que possam estar relacionados àquela necessidade de busca. Com isso, haveria uma otimização do trabalho realizado pela instituição na questão profissional e de acervo.
O que fica de alerta em todo esse momento da criação de serviços de busca e formuladores de respostas com o uso da IA, segue a proposta levantada pelo Professor Emérito Teixeira Coelho (in memoriam) (Folha de S. Paulo, 2 de dezembro de 2019), de que a IA é uma construção humana. O que podemos indicar é que se coloca à frente para as bibliotecas, bem como para os profissionais que atuam nessas instituições dos diferentes segmentos, um desafio grande da incorporação de serviços que façam uso da IA. Além disso, saber qual será o papel de cada instituição nesse novo cenário, onde a interação dos indivíduos com as instituições passa a ser cada vez mais nula.
(*) Leonardo da Silva de Assis é pesquisador do Laboratório de Cultura, Informação e Sociedade (Lacis) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.