O papel crucial da educação na promoção da compreensão e da tolerância
Estamos próximos de completar 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou essa Magna Carta por unanimidade, mas com a abstenção de oito nações, entre as quais a União Soviética e duas repúblicas a ela federadas.
Elaborada por juristas de origens diversas, sua proclamação foi impulsionada pela constatação das atrocidades massivas e sistemáticas perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial, com destaque para o genocídio nazista dos judeus, romanis (ciganos) e outros grupos minoritários.
O artigo 26, que trata do direito à instrução, é o mais extenso de todos, o que sugere ser essa Declaração Universal uma iniciativa de cunho educacional per se. Proclama, no segundo item, que “a instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”.
A ordem dos três propósitos instrucionais enunciados não é casual; pelo contrário, reflete um encadeamento coerente. O fundamento é a capacidade de compreensão das alteridades nacionais, raciais e religiosas. Ela enseja a condição mínima para o convívio humano, que é a tolerância, ou seja, a admissão, sem reação defensiva ou agressiva, de ideias e práticas exóticas, mesmo que esquisitas, extravagantes ou bizarras.
A laboriosa superação desse patamar enseja as desejáveis relações de amizade, sentimento de estima ou de solidariedade que abre possibilidades de cooperação internacional, confraternização interétnica e comunhão inter-religiosa.
O conceito de compreensão merece escrutínio, por ser o propósito fundamental da instrução para os direitos humanos. Sua denotação mais simples, óbvia e literal é a de “entendimento”, ou seja, a faculdade intelectual de perceber o significado de algo. Dessa forma aparece nos prolegômenos da própria Declaração: “Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso”.
Mas esse termo incorpora outros significados, capazes de enriquecer a nossa percepção e, em decorrência, de lapidar processos instrucionais. A noção de compreensão se aproxima à de compaixão. De fato, a capacidade de compreensão é um traço de pessoas empáticas.
A empatia, nos explica a psicologia, é uma habilidade socioemocional que consiste na capacidade de se colocar no lugar de outra pessoa e vislumbrar as questões a partir dessa posição. Destaca-se, em particular, a sensibilidade para compreender o sofrimento alheio e oferecer ajuda. A combinação dos dois significados, de entendimento e de empatia, mostra que compreensão envolve tanto logos como pathos.
Compreensão também envolve o fascinante jogo entre as partes e o todo, caraterística do pensamento sistêmico. Sinônimos de compreender são abranger, abarcar, abraçar, albergar, conter, englobar, envolver e incorporar.
A compreensão profunda de algo demanda enxergar o particular, assim como perscrutar o seu contexto. Esse “olhar multifocal dinâmico” é refinado quando se concertam pessoas que possuem recursos intelectuais e socioemocionais distintos.
Uma experiência notável de confluência das três dimensões do termo “compreensão” foi desenvolvida no âmbito da Academia Intercontinental, uma iniciativa emblemática da rede global de institutos de estudos avançados baseados em universidades, cuja sigla no idioma inglês é UBIAS.
A Academia Intercontinental é uma forma de cooperação entre os membros dessa rede, organizada a cada vez por dois desses institutos, necessariamente localizados em continentes diferentes. Reúne um número limitado de jovens acadêmicos promissores de todo o mundo por um período de duas semanas em cada um dos institutos anfitriões. Os e as participantes são escolhidos entre os candidatos recomendados por todos os institutos da rede Ubias.
A segunda edição da Academia Intercontinental foi concebida e implementada pelo Instituto de Estudos Avançados de Israel, da Universidade Hebraica de Jerusalém, e o Centro de Pesquisa Interdisciplinar da Universidade de Bielefeld, Alemanha, o mais antigo instituto de estudos avançados ligado a uma universidade.
Seu tema, “Sobre a Dignidade Humana”, se nutre do milieu que levou à Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao ser liderado por descendentes das duas partes envolvidas no genocídio nazista. Usa as três dimensões de compreensão para tocar os acordes de debates éticos e práticos contemporâneos cruciais.
A dignidade humana é abordada em pesquisas sobre terrorismo internacional, tortura, guerra (civil), big data e proteção de dados, cuidados de longo prazo, alívio da pobreza e segurança social, minorias, história de direitos humanos, suicídio assistido, regimes de fronteira e engenharia genética, para citar algumas áreas.
Essa edição da Academia Intercontinental acolheu aplicações provenientes de uma ampla gama de disciplinas, como direito, ciências políticas, sociologia, teoria política, história, filosofia, teologia, educação, estudos culturais, estudos literários, biologia, biogenética e informática. Contribuiu para promover um diálogo interdisciplinar sem precedentes sobre a dignidade humana e iniciar uma maior cooperação entre os participantes, que tinham diversas origens científicas e culturais.
E permitiu que jovens pesquisadores promissores trabalhassem e convivessem com algumas das autoridades mais distintas em seus campos de pesquisa, assim inspirando avanços em suas pesquisas.
O Instituto de Estudos Avançados da USP, que acaba de completar 37 anos, é um ativo participante da rede Ubias, da qual é um dos fundadores. Sediou um dos Encontros de Diretores, coordenou a rede na gestão 2018-2021 e integra o Comitê Diretivo. Também coorganizou a primeira Academia Intercontinental, em parceria com o Instituto de Pesquisa Avançada da Universidade de Nagoia, no Japão.
O instigante tema inaugural, Tempo, gerou um curso de tipo MOOC denominado “Off the Clock: the Many Faces of Time”, disponível gratuitamente na plataforma Coursera. Produzido pelos participantes, apresenta um conjunto transdisciplinar e transnacional de perspectivas sobre o tempo.
O curso tem como objetivo expandir a compreensão dos e das participantes sobre as muitas facetas do tempo, desde a nossa experiência humana do presente até a de plantas, animais, bactérias, chegando a abordar a relação da arte com a passagem do tempo. O curso equipa os participantes com ferramentas multidisciplinares para pensar sobre o tempo em constituintes humanos e mais do que humanos.
Toda hora é hora para cuidarmos e valorizarmos os direitos humanos.
(*) Guilherme Ary Plonski é professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária e diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP.