ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram
NOVEMBRO, SÁBADO  16    CAMPO GRANDE 25º

Artigos

O que é asiático brasileiro?

Laís Miwa Higa (*) | 04/10/2022 08:30

“Não é oriental, é asiático!”

Essa tem sido uma afirmação – ou correção – recorrente nos últimos anos no Brasil. O termo “asiático” e suas variações de gênero, “asiática”, “asiátique”, se tornaram a categoria de designação visibilizada e politizada para nos referirmos a identidades, comunidades, culturas e fenótipos com marcas de diferenças de origem na Ásia. Trata-se de uma categoria de autodesignação, ou seja, ela se manifesta a partir de dentro de coletivos, de processos identitários, subjetivos e políticos, de produções acadêmicas e artísticas que as encarnam. Essa é a categoria que propomos para que a sociedade nos nomeie de modo mais adequado ao momento atual. Mas por que não “oriental” ou “amarelo”? Longe de ser uma categoria estabilizada e consensual, “asiático”, como tantas outras categorias identitárias, como tantos nomes, traz todo um universo de histórias, conflitos, sofrimentos, consensos e dissensos, de selfs e alteridades – em constante movimento, fluidez, criação, traduções e suspeição. São categorias em relação, ou seja, “oriental” e “amarelo” são categorias em relação e oposição, sim, a “asiático”.

A obra Conflictus Taxonômicos, de Yudi Rafael, pesquisador, curador e artista, exposta e premiada em 2013, na 45ª Anual de Arte da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), é um dos pontos de irradiação de uma história recente do termo “asiático” no Brasil. Mesas de luz, acrílico, imagens históricas impressas, pó de grafite, fita-crepe. Transparência e opacidade. Pesquisa e arte. Política e implicação. Elementos de uma artesania que culminam numa obra cujo desenho contorna experiências históricas de nomeação e seus impactos na comunidade nipo-americana. O trabalho sobre as imagens e seu display junto a uma lista de termos – Oriental (oriental), Jap (japa), Yellow (amarelo), Asian-American (asiático-americano) – extrapolam, contudo, esse desenho espaço-temporal. Conflictus Taxonômicos carrega no jogo de luz, transparência e opacidade em manchas do pó de grafite e fita-crepe, a ação do tempo através de efeitos visuais de amarelamento e disseminação de fungos. “Esses elementos compõem nossas formas de nos relacionar com esses documentos e com essas histórias”, me conta Yudi Rafael numa conversa em 2021. A luz revela e nos faz ver. Transparência e opacidade, segundo o pesquisador, dizem sobre como essas histórias se colocam para a gente, sobre nosso acesso a elas.

Concordo e, por isso, digo que há aqui uma extrapolação de tempo e espaço. Mas não, sem antes questionar a influência estadunidense sobre as experiências asiático-brasileiras – uma questão de minha pesquisa de doutorado sobre militâncias asiático-brasileiras. Ele me responde que é menos sobre uma questão de hierarquias de influência e visibilidade, e mais sobre diálogos, sobre conexões entre minorias na diáspora, sobre transnacionalismo minoritário. Assim, nossas conversas giram em torno de traduções, mediações, epistemologias, diásporas.

O ponto para nos determos aqui é que a construção recente do termo “asiático” vem, em parte, de uma inspiração dos movimentos Asian-American e de uma produção acadêmica estadunidense, como pude constatar na formação da cena da militância asiático-brasileira em 2016-17. Contudo, o debate em torno da categoria “asiático” vem adquirindo, desde 2014, seus contornos brasileiros específicos e significativos, através da mobilização política, em coletivos e grupos de debate dentro e fora das redes sociais; intelectual, na formação de redes de pesquisadores, produções acadêmicas e eventos; artística, através de obras de arte, curadoria, organização de feiras e coletivos. A partir de 2016, com o surgimento dos coletivos Perigo Amarelo, Plataforma Lótus – Feminismo Asiático Interseccional e Asiáticos pela Diversidade, na rede social Facebook, o debate ganhou novo fôlego, conectando e difundindo essas frentes de mobilização. Atualmente, há dezenas de coletivos asiático-brasileiros nos mais diversos espaços. E também a produção de um “transnacionalismo minoritário” através de uma série de conexões com coletivos e grupos de outros países com diásporas asiáticas.

O primeiro desses grupos no Facebook foi o Estudos Asiático-Brasileiro, criado por Yudi Rafael, em fevereiro de 2014, e no qual, em minha trajetória com o tema, encontrei minha primeira rede de trocas e parcerias com artistas, pesquisadores e militantes. Dessa rede inicial, faziam parte também o antropólogo Alexandre Kishimoto, o historiador Jeffrey Lesser e o artista e performer Shima. Atualmente, as redes cresceram exponencialmente, se multiplicaram e o tema tem ganhado cada vez mais visibilidade e relevância dentro e fora de nossas comunidades. Se naquele primeiro momento, em minha rede, eu era uma das poucas mulheres asiáticas, hoje temos como referências uma maioria de mulheres e pessoas LGBTQIA+, para citar apenas algumas: Gabriela Akemi Shimabuko (Kemi), Tami Tahira, Caroline Ricca Lee, Rodrygo Tanaka, Ken Konishi, Ing Lee, Juily Manghirmalani, Nassim Golsham, Mayra Oi, Vitoru Kinjo, Karina Satomi Matsumoto, Beatriz Diaféria.

Nesses debates e produções recentes, um dos maiores problemas apontados sobre a categoria “oriental” vem do argumento de Edward Said, em sua obra Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente (1978), que demonstra que o Oriente e suas derivações foram construídos em processos de colonização e opressão pelo mundo ocidental, ou seja, são ideias e definições construídas e impostas de fora com fins de dominação de territórios e populações. Sobretudo, os efeitos de tal alterização são a exotização de povos, lugares e culturas e o escamoteamento da perspectiva racista que a embasa, no sentido de não ser direta e claramente compreendida como uma categoria racial, de cor, étnica e também geopolítica.

A categoria “amarelo”, como utilizada no Brasil, também é uma construção exterior ao grupo. Ela foi consolidada pelo Estado brasileiro no Censo Demográfico de 1940, no IBGE, como categoria de raça e depois como categoria raça/cor, para dar conta da população de origem japonesa, cuja imigração teve início em 1908. A origem do termo aqui, desde as últimas décadas do século XIX, se encontra no racismo científico e no debate público com raízes eugenistas. Era baseada já em estereótipos, com sentido derrogatório em sua origem, e muitos deles persistem até hoje. Contudo, a partir dos anos 2000, num contexto social e político abrangente de positivação de termos e designações por parte de movimentos sociais de grupos minoritários, a categoria “amarelo” passou a ser retomada e ressignificada. Ela tem sido também, então, uma categoria de autodesignação e identidade, cuja elaboração e sentidos atuais têm sido produzidos por pessoas brasileiras com ascendência leste-asiática.

O uso atual do termo “asiático”, mais inclusivo, faz referência à Ásia geográfica e, portanto, contempla processos mais abrangentes que a imigração japonesa e uma diversidade de histórias e corporalidades – de coreanes a indianes, armênies a arábes, por exemplo. Essa categoria, portanto, se distingue das anteriores justamente por sua construção de significados ter adquirido relevância e importância desde tais grupos, com contornos fortes dos debates contemporâneos sobre as políticas de raças, identidades e etnias. Retém também um lastro com a experiência histórica da construção do termo, Asian American, nos Estados Unidos, de forte cunho político no contexto do Movimento pelos Direitos Civis da década de 1960, em aliança com movimentos negro-americanos. Há aí, portanto, um acento nas relações de diferenciação e oposição entre as três categorias.

Se, por um lado, ela é mais inclusiva e promoveu alianças importantes entre grupos e pessoas de diferentes origens, por outro, deve-se tomar cuidado com a tendência à homogeneização e achatamento de suas diferenças e desigualdades – não podemos nos esquecer, por exemplo, que existem pessoas asiáticas marrons e também brancas… Importante continuarmos o debate, as trocas, os diálogos e não reproduzir estruturas de relações de poder e hierarquias presentes nos territórios, histórias, diásporas e trajetórias.

(*) Laís Miwa Higa é doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Nos siga no Google Notícias