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Os dois reais e educação doente

Janice Theodoro da Silva (*) | 15/06/2022 10:20

Nós, brasileiros, temos o hábito exótico de comparar coisas incomparáveis. Com a maior tranquilidade assemelhamos um crocodilo com um pacu (peixe brasileiro). A afinidade entre os dois é apenas com a água. Gostam de nadar. Deixando de lado este fato, a água, o resto é diferença. O crocodilo é réptil robusto, gosta de comer animais de grande porte, veados, búfalos e até peixes. Já o pacu, peixe de porte bem mais modesto, é indiferente aos mamíferos, preferindo ingerir apenas insetos ou algas.

Comparar a educação brasileira com a norte-americana, australiana ou dinamarquesa desperta em mim uma enorme estranheza. Observem a renda num país e no outro. Investiguem as tradições religiosas. Analisem a educação ao longo da história. Para encerrar a comparação imprópria, considerem os salários dos professores, de uns e de outros. Existem enormes diferenças, embora, como no caso do crocodilo e do pacu, ambos necessitam da água para a sua sobrevivência. No caso da educação, os estudantes necessitam das escolas e muitas outras coisas.

Para evitar afirmativas genéricas e retóricas, “politicamente corretas”, cito um exemplo esclarecedor da importância dada, de fato, para a educação no Brasil. O exemplo dispensa comparações.

Uma instituição privada no Brasil, voltada para o atendimento de escolas particulares, contrata estudantes (profissionais autônomos), do último ano em Letras (inclusive da USP), para corrigir redações de alunos do Ensino Médio. Eles recebem de dois a três reais por redação. Três reais é o valor pago por redação manuscrita. Dois reais é o valor pago se o texto estiver digitado. As redações são entregues às 14 horas de um dia e devem ser devolvidas às 14 horas do dia seguinte. Em 24 horas, o aluno/professor pode ler de 20 a 120 redações, conforme a sua disponibilidade. A correção envolve erros gramaticais, pontuação, coerência no trato do tema e desenvolvimento adequado do gênero dissertativo-argumentativo. A avaliação do gênero narrativo sugere que o estudante saiba elaborar uma hipótese e argumentar, concluindo o texto com base nas evidências apresentadas.

Olhe uma nota de dois reais, se encontrar, vá até o bar da esquina e tente comprar alguma coisa por este valor. Olhe uma bala obtida no caixa por dois reais e pense: a educação no Brasil é um tema importante?

A “uberização” da escrita e da linguagem, representada pelos dois reais, pagos pela correção de redações, demonstra a falta de respeito pela profissão de professor no Brasil. O pipoqueiro está mais bem posicionado (com todo respeito ao pipoqueiro). Além disso, observe como a “uberização”, acentuada pela covid e os novos meios de comunicação digital, transformou a relação entre professor e aluno. O resultado foi uma metamorfose da linguagem, transformando-a em um instrumento de controle formal sobre qualquer conteúdo. O treinamento prepara o estudante para o Enem.

Perigo à vista para a democracia.

Explico as razões.

A invisibilidade e a imaterialidade da relação entre o professor e o aluno impedem o ato de educar, embora diminua o custo da contratação de um professor. Educar envolve um longo despertar dos sentimentos e da razão. O professor estimula o aluno a procurar os sentidos e significações, para o tempo, para a vida, para a morte, para a felicidade.

A educação envolve a aprendizagem e o uso da linguagem escrita ou oral para a administração dos sentimentos e da razão. Este aprendizado é fruto de uma experiência social (casa, escola, sociedade). A educação e a democracia são irmãs siamesas. Elas exigem, igualmente, a capacidade de reconhecer o significado da norma enquanto instrumento da prática da justiça. Este é o desafio a ser enfrentado na educação e na democracia: juntar a norma com o sentimento de justiça.

A comunicação digital na correção da redação envolve invisibilidade dos dois lados (estudante/aluno). A correção realizada pelo professor possibilita o aprendizado da forma de elaboração de um texto dissertativo-argumentativo. O aprendizado ocorre na sua dimensão instrumental. O tema é sugerido e o aluno desenvolve argumentos para comprovar ou negar a hipótese. Não existe conversa em torno da premissa. Caso a discussão tenha ocorrido, o professor que corrige a redação não tem conhecimento da conversa/debate, feita em sala de aula.

O funcionamento da democracia depende de um longo aprendizado que começa em casa e se aprofunda na escola e na praça pública. O primeiro passo é reconhecer e questionar alguns instintos básicos. Dei um tropeção na mesa. Estou com raiva. Devo destruir a mesa? Estou com ódio de alguém. Vou matá-lo? Tenho inveja do dinheiro ou poder que alguém possui. Vou espezinhá-lo? Esta separação inicial dos instintos qualificando-os e aprendendo a conviver com eles, em sociedade, faz parte da educação necessária à vida social. Sem ela a Constituição, as leis e as normas reguladoras do convívio democrático não funcionam. A obediência cega à autoridade, do tipo um manda e o outro obedece, a incapacidade de compreender o sentido da norma, é perigosa no funcionamento da sociedade civil.

A formatação da linguagem pelo estudante, apenas como instrumento formal, exercita apenas uma pequena parte da lição sobre o viver e se comunicar em sociedade. O aluno aprende a expor uma hipótese, usar dois ou três argumentos coerentes e construir uma conclusão. Foi deixado de lado o mais importante, a reflexão sobre a hipótese, exercício que depende da presença do professor e do aluno.

A hipótese não está em discussão no “modelo uberizado”. Pode ser verdadeira ou falsa, estimular assassinatos de pessoas, destruição do meio ambiente ou sugerir apedrejamento das instituições democráticas. O que importa é: o argumento utilizado é sólido? A prova é adequada? A conclusão é lógica? Se a estrutura mantiver coerência o estudante poderá obter muitos pontos no preparo para o vestibular.

A dimensão instrumental da linguagem e seu uso digital mataram o exercício de reflexão e consciência (pensamento é linguagem). Não se trata mais de refletir sobre o que pode ou não ser justo ou injusto, bom ou mau, certo ou errado para o corpo social. Trata-se de aprender a usar um instrumento independentemente das consequências.

A educação está doente na sua origem. Dois reais é a metáfora da doença. Difícil encontrar um outro país tão doente.

Para exercitar a linguagem matemática, pratique correspondências:

R$ 2,00 = US$ 0,41.

A educação é o nascedouro da política porque a educação constrói tanto o cidadão, como o bárbaro. O Holocausto é o fim de uma longa construção pedagógica. Aprende-se também a matar. O caminho começou a ser construído bem antes dos campos de concentração. Observem o exemplo dos conflitos enfrentados pelo Judiciário. Atualmente, existe uma grande cisão entre o fato ocorrido, próprio ou impróprio, verdadeiro ou falso, e as artimanhas dos procedimentos formais.

Perigo à vista.

Estamos assistindo a uma crise dos instrumentos fundadores da democracia.
Educar envolve o olhar. Olho no olho é uma forma de sentir e refletir junto. Professor e aluno, alunos e colegas. A correção “uberizada” pressupõe um formato distanciado entre dois seres invisíveis. Não é possível saber quem corrigiu e quem escreveu. Não existe lugar para a discussão, conversa, reflexão em circunstância para comentar, discutir e avaliar o que é justo, proporcional e equilibrado.

Não é razoável fazer comparações da educação no Brasil com a educação em qualquer outro país. Os nossos problemas educacionais são próprios da nossa história, da história brasileira. A análise deve brotar da nossa realidade, dos dois reais. A educação pública no Ensino Fundamental e Ensino Médio é deficiente e as escolas particulares se dedicam principalmente para o ensino de conteúdos alinhados com o vestibular, deixando de lado a educação no sentido pleno da palavra.

Educar exige liberdade e autoridade do professor frente aos alunos, todos iguais perante ao professor. Aluno é uma coisa, cliente outra. Por esta razão a educação deve ser de qualidade, pública e gratuita para todos. Uma das grandes qualidades das universidades públicas, apesar dos imensos desafios enfrentados, é oferecer conhecimento de qualidade, laboratórios e pesquisas com produção integrada nacional e internacionalmente, para todos igualmente.

As universidades públicas, diferentemente das escolas públicas, conseguiram reunir pessoas de diferentes extrações sociais para estudar. As universidades públicas desfrutaram e desfrutam de uma condição ímpar: só tem alunos, não clientes. Oferecem ensino de qualidade tanto para os estudantes com origem em escolas particulares de elite, como para estudantes com origem na rede pública. As universidades públicas têm feito um grande esforço, por meio das políticas de cotas, para oferecer mais chances aos estudantes das escolas públicas. O Ensino Médio, público e privado, expressa uma grande desigualdade. Este é um problema que o Estado deve enfrentar.

A cidade separa, os shoppings separam, o futebol separa, as pessoas separam. A universidade pública aproxima. Faz o que é possível no nosso país.

Além do conhecimento oferecido para todos, igualmente, as universidades públicas oferecem a chance, única, para os estudantes das escolas de elite conhecerem os diversos estratos sociais, a vida real na pólis. As universidades oferecem a chance para eles saírem da bolha, sentar-se na mesma carteira, comer na mesma lanchonete e, especialmente, comparar o tempo que ele, estudante da escola privada, levou para chegar de carro e o seu colega, de ônibus.

A diversidade social deste ambiente não pode ser apequenada pela infeliz ideia de cobrar mensalidade de determinados alunos em razão da renda, diferenciando o corpo social, ricos pagantes e pobres não pagantes. A experiência de vida na ágora, na praça, na pólis, é insubstituível. Todos, igualmente formados na USP, por exemplo. Isto é bom. Portadores dos mesmos direitos e deveres, habilitados para a prática de um convívio civilizado e democrático.

P.S. Casos de dúvida em relação à tributação injusta no Brasil de ricos, meio ricos, pobres e muito pobres, sugiro consultar um especialista em impostos e tributos. Este é o caminho para o Estado combater a desigualdade. A conversa pode começar com Bernard Appy. Ele conhece o problema a fundo. É possível, civilizadamente, concordar e discordar dele. A desigualdade deve ser combatida no pagamento dos impostos.

Na escola, todos, devem ser iguais. É pedagógico.

(*) Janice Theodoro da Silva é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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