Patrimônio cultural deve estar onde a comunidade está
A Constituição preceitua em seu artigo nº 216 que a proteção do patrimônio cultural é responsabilidade do Poder Público e deverá acontecer em "colaboração com a comunidade", especialmente porque esse patrimônio deve ser portador de "referência à identidade, ação e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira".
Entretanto, é muito comum percebermos que a participação social no processo de eleição e gestão de bens culturais é minimizada em decorrência da atuação monopolizada de "especialistas" e "profissionais" do patrimônio.
O alijamento da população nesse processo de reconhecimento e gestão dos bens culturais ainda é consequência dos períodos autoritários que compõem a história da construção do Estado e da sociedade brasileira, nos quais os direitos sociais eram mínimos e os direitos culturais eram exercidos por uma minoria, que utilizava as suas referências culturais como instrumento de dominação e imposição de um modo de ser, fazer e viver que não representava a identidade, a ação e a memória da maioria da população.
Contudo, o histórico de luta por democracia e a construção da Constituição de 1988, que completou 35 anos em 2023, trouxe uma nova perspectiva sobre a centralidade do protagonismo social na gestão pública como indicador de qualidade de cidadania. Essa mesma perspectiva se aplica à participação social no processo de eleição e gestão de bens culturais.
Nesse sentido, não é possível pensar a construção de políticas culturais, principalmente as relacionadas ao patrimônio cultural, sem a participação e o protagonismo social e para além da "comunidade dos especialistas" no campo. É preciso deslocar o centro de interesse das políticas culturais para as reais necessidades culturais das comunidades, garantindo, de fato, o livre e efetivo exercício dos direitos culturais e da cidadania.
No estado de coisas da democracia brasileira e no intuito de garantir o seu fortalecimento, toda política cultural que não provenha da comunidade, "que não fortaleça a sociedade civil e não atenda a seus interesses não têm mais razão de ser" (Teixeira Coelho, 2014, p. 442). Assim também, os processos de eleição e gestão de bens culturais que não fortaleçam a sociedade civil e não garanta o seu protagonismo, não possuem mais razão de existir em função do seu teor antidemocrático e de anticidadania.
Para garantir a cidadania nesses processos é preciso entender as políticas culturais como uma parceria entre as formas organizativas da Sociedade Civil e o Estado para atingir determinados fins culturais, relação que traz em seu bojo o potencial de transformação humana e social, pois não são políticas apenas pensadas para os indivíduos e suas comunidades, mas que devem emanar desses mesmos indivíduos e comunidades, sob pena de não possuir representatividade.
Também é necessário pensar a política cultural, em especial a de base comunitária, como uma forma de "criar pontes" entre os agentes envolvidos. Nesse sentido, Célio Turino (2021) ensina que uma política e uma gestão cultural de base comunitária devem criar condições para o "desabrochar" do protagonismo, do empoderamento e da autonomia sociais.
Dessa forma, também a eleição e a gestão de bens culturais devem configurarem-se como um conjunto de ações conduzidas e indicadas pelas próprias comunidades. Assim, teremos cada vez mais bens culturais reconhecidos que estão intimamente integrados ao cotidiano das pessoas e menos bens culturais abandonados à própria sorte e às intempéries ambientais e sociais.
(*) Aramis Macêdo é historiador, gestor cultural, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais e membro do Ponto de Cultura Clube Carnavalesco Mixto Seu Malaquias.