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Percurso da Literatura em Mato Grosso do Sul

Albana Xavier Nogueira (*) | 24/08/2023 09:30

Não obstante a situação desfavorável ao desenvolvimento da arte de escrever, assim como de outras manifestações culturais, muito antes da divisão do antigo Estado de Mato Grosso já havia, por parte de escritores de diversas áreas do conhecimento, o interesse em publicar suas obras.

Autores como Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, Ricardo Franco de Almeida Serra, Augusto João Manoel Leverger conseguiram vencer obstáculos e brindar os leitores com obras que se tornariam referência para novos escritores e pesquisadores de assuntos relacionados aos primeiros momentos da história e da literatura na região que corresponde ao atual Mato Grosso do Sul e colaboraram para transformar Corumbá no berço das letras no Estado.

Abrindo caminhos

No percurso inicial de procura de espaço para expor as primeiras produções literárias, nascidas no sul do Mato Grosso uno, os suplementos literários constituíram suporte privilegiado na edição e divulgação de poemas, crônicas, artigos, resenhas. Neles, os autores e críticos puderam revelar seus pontos de vista relativos ao cotidiano, às tradições e vivências. Nesse contexto de registro e divulgação das primeiras manifestações literárias e culturais da época, em Campo Grande, destaca-se a revista “Folha da Serra”, editada por Agnaldo Trouy, durante nove anos, de 1931 a 1940.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelos autores, desde o início do século 20 já circulavam as primeiras criações literárias, ainda no Mato Grosso uno. Corumbá congregava um grupo atuante de grandes poetas, influenciados pelo parnasianismo e pelo romantismo, estilos que, ainda hoje, atraem muitos autores. O poeta Pedro Paulo de Medeiros foi o que mais se destacou entre os sonetistas da primeira metade do século passado. Todavia, Lobivar de Matos foi o poeta de vanguarda, que usou, normalmente, formas livres, para denunciar problemas sociais e cantar o cotidiano de sua cidade.

Outros municípios mais antigos, como Aquidauana, Três Lagoas, Dourados, Campo Grande, Ponta Porã, tiveram seus precursores. Quem se propuser a pesquisar os jornais dessas cidades encontrará os nomes do poeta Severino de Toledo, em Aquidauana; Rosário Congro, Elmano Soares, Sabino José da Costa e Júlio Mancini, em Três Lagoas; e de Weimar Torres, em Dourados. Campo Grande também consagrou, entre os formadores de sua identidade literária, nomes como Hugo Pereira do Vale, Júlio Guimarães, Oliva Enciso, Germano Barros de Souza, Ulisses Serra, Otávio Gonçalves Gomes e muitos outros autores que fortalecem esse cenário, como Manoel de Barros, cujo nome extrapola as fronteiras do Estado e ganha espaço global.

Buscando as fontes

As artes em geral, dentre elas a literatura de MS, alcançaram maior visibilidade após a criação do Estado e a instalação da sede do governo, em Campo Grande, no ano de 1979. Diante do sobressalto, ainda atônitos, os portadores da nova cidadania, de repente, amanheceram sul-mato-grossenses, sem que tivessem, ainda, dado conta do que isso pudesse significar, nem de como poderiam adequar as identidades emergentes. Às novas urgências impostas por tão singular situação. Iniciou-se, então, a corrida em busca das fontes, dos testemunhos, das vozes que descortinassem os segredos e a magia desse novo acordar.

Acrescenta-se, ainda, que a fase inaugural foi oportuna para o fomento de um clima de otimismo e esperança. Se, de um lado, viveram-se momentos de efervescência na produção de textos, estimulados pela ânsia de conseguir publicá-los, de outro, assistiu-se ao despertar do interesse em conhecer e valorizar autores que já vinham produzindo suas obras, muitos deles, no mais perfeito anonimato.

Nessa mesma linha de valorização e divulgação de produções sul-mato-grossenses, sobressaem-se trabalhos de reedição de obras de autores consagrados no panorama das letras em MS, como Ulisses Serra, José de Melo e Silva, Hildebrando Campestrini, Acyr Vaz Guimarães e Paulo Coelho Machado, bem como a publicação de obras de Maria da Glória Sá Rosa, Rosário Congro e Nelly Martins.

Quanto às opções temáticas, a construção de poemas, quer sob a forma de sonetos, quer seguindo as tendências de cunho vanguardista, como versos livres ou brancos, valorização da sonoridade ou do sentido do signo, passeiam pelas páginas da literatura sul-mato-grossense, onde disputam espaço com o conto e a crônica.

Mesmo que a literatura sul-mato-grossense, conforme Maria da Glória Sá Rosa, não conte com grandes romancistas, alguns importantes romances, que reinventam fatos, dramas e histórias, tendo como cenário a ambiência local, foram escritos por autores de outros Estados, que nunca fixaram residência em MS, dentre eles: Visconde de Taunay, que escreveu “Inocência” e a “Retirada da Laguna”; Hernani Donato, autor de “Selva Trágica”; e Antônio Calado, autor de “Sempre Viva”.

Importante reativar o valor de historiadores, cronistas da história, contadores de fatos lidos ou de acontecimentos testemunhados ou ouvidos de outros, narradores de episódios, bem como dos geógrafos, geólogos, antropólogos e demais estudiosos, que produziram valiosas fontes de pesquisas para os que desejam ter acesso aos acontecimentos que marcaram a trajetória desta região. Dentre outros, ressaltam-se Raul Silveira de Mello, Otávio Gonçalves Gomes, Lécio Gomes da Silva, José de Melo e Silva, Demosthenes Martins, Antônio Lopes Lins, Astúrio Monteiro de Lima.

Entre ficção e história

Como é possível verificar, a literatura, a história, a historiografia, o memorialismo, as crônicas da história local são manifestações vinculadas à cultura que representam e refletem, por intermediação da linguagem. As diversas vezes que se entrecruzam, se aproximam ou se distanciam, esboçam o panorama caleidoscópico, formado por diferentes visões de mundo, acentuadas, não só por experiências díspares, mas, também, pelas múltiplas procedências, uma vez que a produção literária de MS resulta do trabalho de autores oriundos das mais diversas regiões do país, que, em decorrência dos mais variados motivos, migraram para este Estado e se somaram àqueles que aqui nasceram e que aqui vivem.

Na época atual, os textos memorialistas têm ampliado seu espaço, acreditam uns, quer por influência da historiografia, quer, pelo método da História Oral, procura resgatar fatos vividos por pessoas que deles participaram como atores ou testemunhas.

De uma ou de outra forma, o crescente prestígio das fontes orais e da memória, na reconstrução do passado, contribui para a expansão do memorialismo. Autores como Visconde de Taunay, Elpídio Reis, Ulisses Serra, Aglay Trindade, Manoel de Barros permearam os caminhos da memória, intercalando história real e verossimilhanças.

Resumindo, as vozes dos poetas, escritores, historiadores, memorialistas evidenciam a constante preocupação com o redimensionamento da cultura, das artes, das tradições, ao mesmo tempo em que reconhecem o compromisso que lhes cabe de fazer da literatura não apenas um instrumento de lazer, mas, sobretudo, um veículo de conscientização social e de humanização, ratificando as palavras de Antônio Cândido que considera o caráter formador da literatura como uma de suas funções essenciais, ao afirmar que a literatura “não corrompe, nem edifica, mas humaniza, em sentido profundo, porque faz viver”.

Novos desafios

Concluindo, diríamos, ainda que, embora haja certo clima de insegurança em relação aos caminhos da literatura, diante das extraordinárias transformações que as sociedades vêm presenciando, principalmente por meio das revoluções tecnológicas proporcionadas pela internet, tudo indica que a literatura expressa em diferentes gêneros e formas, deve prevalecer, não só por ser patrimônio histórico e social comum a cada povo, mas também pela natureza imaginativa do ser humano, que precisa da palavra viva, recriadora de sentidos novos.

Certamente, o suporte para as palavras impressas em forma de romance, conto, ensaio e outras modalidades históricas e científicas mudará, como aliás, já está ocorrendo. O leitor acostumado a manusear o objeto livro, a sentir o cheirinho do papel impresso, talvez tenha que se adaptar à “textualidade eletrônica” da era digital.

Portanto, caberá aos autores, sempre que necessário, ajustarem seus textos à transmissão eletrônica. Às escolas cabe a formação de leitores aptos a decodificarem e entenderem tanto os textos digitais, colocados na tela das diferentes modalidades de computador, quanto os tradicionais, escritos no papel, uma vez que, segundo Affonso Romano Sant'Ana, “o Brasil não produz livros ‘demais’, o Brasil produz leitores de menos”, de modo que todas as tentativas para atrair os leitores são bem-vindas.

(*) Albana Xavier Nogueira é doutora em Letras, professora e pesquisadora.

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