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Pode o feminismo escapar ao colonialismo?

Eva Alterman Blay (*) | 08/07/2021 08:30

Ao longo do século 21 avulta a discussão sobre os efeitos da colonização nos países da América Latina, da África e da Ásia. Será que só agora percebemos que adotamos paradigmas oriundos dos países econômica e politicamente hegemônicos?

Na academia, a influência da produção intelectual francesa marcou o século 20. Nos últimos 50 anos, a ela mesclou-se a produção acadêmica proveniente de norte-americanos – nativos ou que trabalham nas universidades do país. No campo teórico feminista, essas duas correntes de influências são notáveis (citem-se Chombart de Lauwe, Perrot, Schulmann, Friedan, Sen, Scott, Hooks, Butler, etc.)

O panorama intelectual e científico foi permeado conforme o acesso à bibliografia vinda dos países hegemônicos. E essa irradiação se acentua, mais recentemente, a partir da extraordinária transformação dos meios de comunicação.

Nesse contexto, sem detalhar aqui essa profunda mutação, proponho examinar, através de um “estudo de caso”, como a modernização dos meios de comunicação tem servido para “modernizar” a colonização.

O acesso às obras científicas é muito desigual no Brasil: a ausência de bibliotecas, e mesmo de livrarias, é comum; a internet e os computadores são bens caros e nem sempre disponíveis; estudar através do telefone celular, última possibilidade dos estudantes, é um sacrifício inominável. Assim, as editoras particulares, apesar da carência de recursos econômicos da população, encontraram um nicho favorável para sua inserção/influência. Algumas se tornaram quase universidades ensinando como se produz um livro (ex. Fundação Editora Unesp), outras se voltaram para a produção de edições destinadas a estudantes (Zahar) e outras ainda procuraram investir em linhas com relativa orientação ideológica (Brasiliense, Boitempo).

Uma editora como a Boitempo, dispondo de condições econômicas para postar informações sobre suas publicações na internet quase diariamente, fatalmente direciona as leituras a que nossos estudantes, professores e pesquisadores têm acesso. É claro que, sendo comercial, a produção também responde à demanda. Assim a editora escolhe, produz, traduz e vende textos, cria debates, acaba valorizando temas e autores.

Recentemente ela tem dado forte atenção ao livro Feminismo para os 99%, um Manifesto, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser. O texto é apresentado como “um manifesto potente sobre a necessidade de um feminismo anticapitalista, antirracista, antiLGBTfóbico e indissociável da perspectiva ecológica do bem viver. Feminismo para os 99% é sobre um feminismo urgente, que não se contenta com a representatividade das mulheres nos altos escalões das corporações. O Manifesto feminista faz parte de um movimento global e será [foi] lançado no 8 de março de 2019 em diversos países, como Itália, França, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina e Suécia”.

Em síntese, o Manifesto propõe dois tipos de ação: uma contra o capitalismo e outra a favor de uma aliança global feminista.

As autoras propõem um novo feminismo para as mulheres (as 99%), considerando que o que existe atualmente é um suposto feminismo dominado por algumas mulheres que, ao quebrar o “teto de vidro”, alcançam posições altas na estrutura econômica capitalista. Essas mulheres não estariam preocupadas com as 99% exploradas por elas mesmas e se beneficiam das vantagens do capitalismo para proveito próprio.

Observe-se que o argumento parte basicamente do modelo capitalista norte-americano ou do norte/global e o generaliza para outras partes do globo. Mais ainda, retrata um “cenário bipolar”, com duas visões de feminismos: uma em que ele é um “servo do capitalismo” apoiado na igualdade de oportunidades; outra em que ele visa ao “fim da dominação capitalista e patriarcal”.

Em consequência, a generalização das “99%” comete o engano de “fundir sem diferenciação o feminismo liberal com o financeirizado neoliberal”, como apontam Martinez e Galindo. Além disso, segundo o Manifesto, a suposta unidade das 99% mulheres exploradas seria mobilizada através de um amplo movimento internacional – como a greve dos cinco milhões de mulheres na Espanha.

Não são novidade as propostas de greve e mobilizações dos movimentos feministas. Por exemplo, temos a Marcha Mundial de Mulheres, as marchas das trabalhadoras do campo (Marcha das Margaridas), a das mulheres negras, a das mulheres indígenas. São ações cujo sucesso depende das variações econômicas e de trabalho, de possibilidades locais e estruturais. Nos países da América Latina, Ásia e África as mulheres não têm condições de abrir mão de um dia de remuneração se deixam de comparecer ao trabalho, ainda assim as manifestações são fortes. Mas um movimento de 99% é utópico.

O Manifesto tem proposta eclética (anticapitalista, antirracista, anti…) que assumiu, no Brasil e na América Latina, uma vertente materialista e, por vezes, marxista. Devemos ao feminismo norte-americano o exponencial crescimento da luta antirracista. Mas a ação mais radical foi a mobilização das maquiladoras, trabalhadoras nas empresas fundadas na fronteira México-Estados Unidos. Jovens mulheres, quase meninas, desapareciam e a polícia nada fazia para encontrá-las. Familiares, a maioria mulheres, depois de muito procurar, encontravam os corpos mutilados. As marcas eram específicas, revelando agressões que deformavam partes sexuais do corpo das mulheres. A polícia e o governo mexicano atribuíam às trabalhadoras a responsabilidade pelo crime. Os estudos de Verónica Gago, mostrando a responsabilidade das empresas, da polícia, da máfia da droga e do Estado mexicano, ganharam repercussão, e só quando a situação chegou a um nível internacional as denúncias tiveram efeito. Foi o movimento das maquiladoras – um feminismo político – que, ao afetar a produção, o grande capital, conseguiu mudar o eixo dominado pelo patriarcado e a misoginia do Estado mexicano.

No Brasil há um forte, mas ainda insuficiente, movimento feminista para romper o poder machista sobre o corpo das mulheres especialmente no campo dos direitos reprodutivos. O exemplo mais sensível deste poder misógino e patriarcal pode ser visto na ação da Câmara, do Senado e do Executivo. Uma composição majoritariamente masculina somada a um grupo de parlamentares mulheres conservadoras impõe regras sobre os direitos reprodutivos. Insistem em derrubar a legislação aprovada há décadas quanto ao direito ao aborto mesmo em casos de estupro, incesto, ou até quando há risco de vida para a mulher; restringem educação sexual nas escolas e têm a ousadia de propor um programa oficial de controle do comportamento sexual (o programa “Escolhi Esperar”).

Em síntese, não é uma aliança contra o capitalismo que vai resolver esses complexos problemas. Ao contrário, observando a Argentina, o Chile e o Uruguai, verifica-se que, tanto nas mobilizações pelo direito à interrupção da gravidez como nos movimentos “Nem uma a menos” (contra o feminicídio), as ações foram bem-sucedidas apesar da manutenção do capitalismo. Como dizem Martinez e Galindo, os problemas decorrem de uma “trama de uso e abuso do poder patriarcal, classista e racista, cuja estrutura é colonial e ancestral”.

Priorizar a luta contra o capitalismo é ignorar as lutas feministas específicas ou, como ocorreu na primeira metade do século 20, colocar a luta feminista numa posição subalterna à luta geral contra o capitalismo. No Brasil, na década de 1980 – minha homenagem à clarividência de Beth Lobo – houve um grande debate para introduzir nos partidos políticos de esquerda e nos sindicatos a importância das lutas feministas e mostrar que elas não atrasam as lutas gerais.

O modelo proposto pelo Manifesto é, como diria Susan Besse, na obra Modernizando a desigualdade – reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, uma modernização do colonialismo.

(*) Eva Alterman Blay é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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