Quilombolas
Demorou, mas saiu. O IBGE divulgou, em 27 de julho de 2023, a maior novidade do Censo Demográfico brasileiro que são os dados referentes à população quilombola no país.
1.327.802 pessoas – ou seja, 0,65% dos brasileiros – se autodeclaram remanescentes de quilombos. 68,19% delas estão especializadas no Nordeste. 13,73%, no Sudeste. 12,51%, no Norte. 3,39%, Centro-Oeste. E 2,19%, Sul.
A Bahia com 397.059, o Maranhão com 269.074 e Minas Gerais com 135.310 são os estados com o maior percentual de quilombolas. O Amazonas com 2.705, o Mato Grosso do Sul com 2.546 e o Distrito Federal com 305 deles figuram com o menor percentual. E Roraima e o Acre – por alguma razão que mereceria uma nota do IBGE – aparecem, inverossimilmente, com nenhuma pessoa remanescente de quilombos.
Essa inovação do IBGE é a primeira cartografia formal e, portanto, reconhecida pelo Estado brasileiro, sobre a condição e a localização dos quilombolas brasileiros. A partir do conjunto de dados apresentados nesse Censo, ficou mais precisa a capacidade de identificação e mensuração de quem hoje são, onde vivem e o que fazem os herdeiros de Palmares.
Só isso já justificaria catadupas de aplausos aos sempre muito competentes funcionários desse faustoso instituto brasileiro. Entretanto, é possível e é preciso ir além para se notar que muito mais relevante do que os dados publicados nesse notável Censo 2022 – Quilombolas: primeiros resultados do universo são o que a sua publicação, em si, representa.
Bem ou mal, esses dados eram quase integralmente conhecidos ou intuídos por estudiosos, centros de pesquisa e agências do Estado brasileiro dedicados à formulação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas ao encontro das populações tradicionais brasileiras. Mas a sua publicação na forma de censo amplifica a visibilidade do assunto e de sua problemática, populariza instrumentos para o aperfeiçoamento de políticas públicas ao encontro de quilombolas e, sutilmente, aumenta a densidade da democracia brasileira a partir da contemplação mais abrangente de preceitos da Constituição de 1988 esquecidos ou menosprezados desde muito.
É de se lembrar que a questão quilombola – como substrato da questão negra e da questão do negro no Brasil – foi objeto da Constituinte de 1986-1988. Lastreada na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e no espírito da lembrança dos 100 anos de assinatura da Lei Áurea, a Constituição Cidadã dispensou dois artigos, o 68 e o 216, muito claros e precisos, ao encontro da matéria.
O primeiro definiu o imperativo do reconhecimento de títulos de terras aos remanescentes de quilombos residentes e demandantes. O segundo determinou a incorporação dos territórios quilombolas ao patrimônio nacional brasileiro.
Esse Censo de 2022 vai, portanto, ajudar a contemplar, mesmo que tardiamente, parcelas importantes desses imperativos – o que, em si, já representa algo formidável. Mas o seu simbolismo vai além. A aferição desses, hoje, sabidos, 0,65% da população brasileira como quilombolas também reabre debates muito legítimos, importantes e em nada pacificados sobre o passado, o presente e o futuro do país.
Está mais que evidente que de uma melhor compreensão da escravidão e de seus legados depende uma melhor abordagem da insistente recorrência de racismos e preconceitos multirraciais e multiétnicos no Brasil. Ao mesmo tempo, nessa melhor abordagem reside a convicção inabalável da necessidade de superação – ou, ao menos, diminuição – das desigualdades multidimensionais estruturalmente vigentes entre os brasileiros.
Não restam dúvidas de que foram diversos os saltos positivos de qualidade da condição dos negros (e dos quilombolas) no Brasil após 1988. Especialmente nos anos de 2000, esse aprimoramento social ganhou relevos palpáveis jamais percebidos anteriormente.
O reconhecimento público da importância de ancestralidades africanas, afro-americanas, afro-ameríndias e afro-brasileiras na composição do éthos dos brasileiros, por exemplo, ganhou, notadamente a partir de 2003, níveis inimagináveis inclusive pelos paladinos miscibilidade – Gilberto Freyre à frente nos já distantes anos de 1930. A ampliação – embora ainda deficitária e rarefeita – da presença e da participação de negros em praticamente todos os segmentos da sociedade passou à condição de evidência. Mesmo assim, muitos nós cegos continuaram marinheiramente cerrados.
Com a hecatombe multidimensional de crises que começaram a assolar o país em tom estridente a partir das noites de junho de 2013, uma evidente reversão de expectativas sobre essas conquistas sociais passou a envolver a integralidade da sociedade brasileira; especialmente, no concernente às populações negras.
Uma rápida apreciação dos dados, por exemplo, sobre a composição do mercado de trabalho no interior dos tombos sucessivos de crescimento do PIB brasileiro a partir de 2014 – 0,5% em 2014, -3,5 em 2015 e -3,3 em 2016 e, adiante, da manutenção de crescimentos não superiores a 1,1% até a pandemia de 2020 – indica que, no universo dos 6,6% de desempregados em dezembro de 2014, 13,9% de março de 2017, 11,1% em dezembro de 2019, 14,9% de março de 2021 e 7,9% de dezembro de 2022, parte majoritária e progressiva era composta de negros, mais negros, mulheres e mais mulheres negras.
Uma análise mais detida sobre a composição dos desalentados – ou seja, dos desocupados e desesperados que deixaram de buscar emprego e, conseguintemente, saíram dos radares do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) – nesse decênio macabro de 2013 a 2022 demonstra, claramente, que os brasileiros mais desiludidos e desacorçoados com a situação do país têm cor. Uma cor revestida em peles, memórias e emoções negras, afro-ameríndias e afro-negras.
Diferente do que se poderia considerar no início deste século XXI, quando um sociólogo passou a faixa presidencial a um metalúrgico, esses desempregados, desesperados, desalentados com cor dos anos de 2014 a 2022, não raramente, possuíam vários anos de escolarização, muita vez, com sofisticados diplomas de formação universitária. Ou seja, desde algum momento após as noites de junho de 2013, inaugurou-se no Brasil uma era dos desempregados, desesperados, desalentados diplomados.
Problemas da expansão universitária ou da manutenção estrutural de restrições de acesso do mercado de trabalho para determinados segmentos da sociedade brasileira?
Como se nada disso já não fosse demasiadamente desolador, o biênio 2020-2021 ainda brindaria o planeta e o Brasil com a pandemia de covid-19. Uma crise sanitária extrema. Que reabilitou para todos a versão mais desconcertante do memento mori. Aquela que reavivou, de súbito e sem mediações, o imperativo do trágico na vida e do trágico na História. Um imperativo que se mostrou, inicialmente, democraticamente universal. Mas com o tempo fez emergir, mais uma vez, o detalhe insofismável da cor.
Esse mesmo IBGE que vem de apresentar essa notável amostra sobre quilombolas foi o mesmo que documentou, sucessivamente, a partir de março de 2020, que, na média, 55% das almas ceifadas pela pandemia no Brasil eram de negros – homens, mulheres e afins. Como parcelas expressivas desses falecidos eram homens, casados e/ou arrimos de família, é de se supor que muitas famílias negras e/ou inter-raciais heteronormativas ficaram disfuncionais e amargaram pandemônios ainda mais penetrantes que as demais.
Mas isso ainda não foi tudo.
O propalado “novo normal” inaugurado pelo “voltem para a rua” após o “fique em casa” foi dimensionado numa verdadeira histerese de variados segmentos sociais, setores econômicos e dimensões existenciais da sociedade brasileira. Pouco voltou a ser como antes e muito ficou ainda mais diferenciado em função do choque inflacionário decorrente de externalidades negativas do conflito russo-ucraniano iniciado em fevereiro de 2022.
A incrível volatilidade instantânea de preços no Brasil após o início das investidas russas reduziu – ainda mais – a acessibilidade regular de todos os brasileiros a itens básicos de sua dieta alimentar. No caso das populações negras, desfalcadas fisicamente ou diminuídas em seu poder de compra, essa restrição foi ainda maior e mais dramática.
Junto, portanto, à publicação desse Censo 2022 – Quilombolas: primeiros resultados do universo pelo IBGE, aviva-se no interior da sociedade brasileira o sentido mais indisfarçável da questão quilombola que é a necessidade de resistência. Populações quilombolas (e populações negras em geral) são, antes e acima de tudo, a expressão de resistência.
0,65% da população brasileira pode parecer algo irrisório. Mas nesse percentual residem chamas imemoriais ainda acesas que ultrapassam os territórios quilombolas e inundam o corpo e a alma de todo o país e de todos os brasileiros. Negros ou não. Essa pequena porção de brasileiros quilombolas que resistem informa que há verdades inconvenientes que não se calam e passados inconsequentes que não passam.
O significado mais expressivo desse esforço do IBGE corporificado nesse censo é justamente esse: recordar a todos que seguem vivas e altaneiras as inconveniências e inconsequências que nos trouxeram até aqui.
(*) Daniel Afonso da Silva é pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP.