Relatos de escravidão e de uma Europa não tão humana
Na primeira metade do século XIX, diversos viajantes visitaram o Brasil e registraram suas impressões sobre o nosso país. O que se destaca nesses relatos é o tratamento dado às pessoas escravizadas. Sejam os “crioulos” (nascidos na terra), sejam os nascidos em África, a população negra é submetida a condições de degradação cuja compreensão do leitor do século XXI passa, por vezes, pela crença de que eles não eram vistos como Humanos, ou, no mínimo, eram considerados Seres Humanos “menos humanos”. Esses relatos dizem mais sobre o que significa ser europeu do que sobre como era o Brasil do século XIX.
O que surpreende é a clareza, com o perdão da contradição de utilizar essa expressão, que muitos desses viajantes têm em relação ao caráter da igualdade moral e intelectual entre negros e brancos, o que não recebe uma indignação compatível com essa compreensão. Carl Schilichthorst, em O Rio de Janeiro como é, diz que “todos os escravos, em geral, são casados ou vivem maritalmente, embora sem a benção religiosa. Dizem que tais uniões são muito felizes, mantendo ambos os cônjuges modelar fidelidade”.
Esse relato, que é semelhante aos reunidos por Angela Davis em Mulher, Raça e Classe, neste caso sobre as condições nos EUA, demonstra essa percepção de uma moralidade familiar de população negra compatível com os mais elevados valores da época.
Isso é semelhante ao que pensa Henry Koester em Viagens ao Nordeste do Brasil: “Se um número conveniente de mulheres for disposto nas propriedades e os escravos forem ensinados a portarem-se da maneira que se usa nos domínios bem dirigidos, serão os negros tão corretos em sua conduta como outra qualquer espécie humana”. Ele sintetiza afirmando que “O mal não provém dessa raça humana, mas de situação amargurada em que ela se encontra reduzida”.
Nesse mesmo contexto, temos Carl Seidler, em Dez anos no Brasil, dizendo que “[…] O europeu que nunca viu semelhante espetáculo fica em dúvida se serão mesmo seres humanos”. Seidler ainda faz reflexões sobre a condição do ser humano como propriedade privada de outrem: “As leis não vedam semelhante crueldade [roubar o dinheiro guardado de um escravo], pois o escravo, ele próprio propriedade alheia, não pode ter propriedade”. Pode alguém ser humano e ainda ser produto? Ainda Seidler: “Não falarei em humanidade, mas o próprio interesse comercial, a grande roda motora no caminho de vento da existência, força os negreiros cuidarem de levar sua mercadoria ao mercado em bom estado de saúde e conservação; pois um negro robusto, sadio, dá 400 piastras, ao passo que um fraco ou adoentado não dá mais que 150 a 200”.
A condição de propriedade privada priva o Ser Humano escravizado do direito de ser humano.
Voltando ao relato de Koester, ele diz que qualquer direito do escravo era ignorado se o senhor assim o desejasse, porque a justiça não ficaria do lado daquele e que o senhor cruel seria punido no máximo com multa, da qual o escravo não recebe nada. Não é a humanidade que garante direitos a essa população, apesar de diversas percepções positivas desses viajantes sobre seu caráter humano — “Que o carácter geral dos escravos seja amável e que predomine a bondade natural não são de esperar. Ficamos mesmo surpreendidos com a existência desses elementos de virtudes encontrados entre os que estão reduzidos a uma situação de extrema miséria”, escreve Koester.
Mas seu valor como mercadoria pode ser notado no relato de Seidler: “Os ingleses asseveram que só humanity [sic] os determina ao impor tão duro tratado ao Brasil; mas o seu modo de proceder com relação aos escravos está em forte contraste com esse atrevido asserto, de modo que se tem todo o direito de suspeitar que fosse somente o interesse deles e não qualquer sentimento nobre o móvel para se oporem ao tráfico negro: pois se fosse a magnanimidade a causa de seus passos deveriam dar liberdade aos negros que apontassem a bordo dos piratas brasileiros em alto-mar; e não é o que fazem. […] Imediatamente o capitão é rigorosamente preso a bordo do navio inglês, seu barco é rebocado e levado para qualquer porto brasileiro, ainda com toda a carga é vendido para o governo inglês. […] os pobres negros são publicamente postos em leilão.”
Apesar de várias reflexões sobre a humanidade da população negra nesse período, é com condescendência que nada difere da voltada a um animal de trabalho cujo valor está ligado a sua condição de mercadoria, ou seja, seu valor é seu preço, que ela é tratada, como podemos ver em Notas sobre o Rio de Janeiro, de John Luccoch: “nenhuma outra classe social recebeu tão grandes benefícios da comum prosperidade do país como a porção negra de sua população”.
Não é tanto a condição degradante e angustiante do escravizado que me chama a atenção, porque essa é bem conhecida e divulgada: ela choca, evidentemente, mas não surpreende, uma vez que a historiografia brasileira, tentando dar conta de registrar a história dos afro-brasileiros, explorou, à exaustão, seu papel de vítima. Surpreende, isso sim, a percepção, por parte dos viajantes europeus, da humanidade dessas pessoas escravizadas, o que não foi acompanhado de sentimentos de indignação compatíveis.
É anacronismo esperar essa indignação do europeu do século XIX? Talvez seja. O europeu dito civilizado, contudo, supostamente educado, “inventor” dos direitos humanos, reconhece a humanidade de africanos, latino-americanos e — por que não? — de árabes no século XXI de maneira diferente da que reconheceu a dos africanos do século XIX? Parece-me que não, uma vez que os relatos da xenofobia europeia recrudesceram com a pandemia mundial. Os relatos dos viajantes do século XIX jogam mais luz sobre o europeu moderno do que sobre o contexto do Brasil do século XIX, pelo menos para mim, que sou um latino-americano com bastante acesso à educação formal.
(*) Pedro Antônio Matias da Silva é mestre em Letras e graduando em História.