Retorno ao presencial: de um cárcere a outro
Em 2020, foi decretada a pandemia de covid-19. Decretada, tal qual determinação da lei – lei humana e lei natural –, encarada como condenação. Condenação seguida pela sentença ao confinamento. Assim foi que nossa casa se transformou em cárcere. Encerrados onde antes era refúgio, abrigo e porto seguro, esperamos. Dias, semanas, meses… esperamos.
Soterrados pelo ensino remoto emergencial, pelo trabalho remoto emergencial, pelos relacionamentos remotos emergenciais: estávamos cercados pela emergência de um novo cenário no mesmo mundo de sempre: doença, dor e morte – aposto do aposto, mesmo que não conseguíssemos entender o porquê. E os dias se tornaram iguais apesar de tudo ser tão diferente era tudo a mesma coisa – sim, sem vírgula, pois nada separava os espaços que ocupávamos. Nos adaptamos, nos acostumamos, nos assujeitamos – assim mesmo, pronome oblíquo começando a frase, não obstante a regra, já que não havia mais norma nem orientação nesse caminho incerto que percorremos tropeçando.
Em 2021, um abrandamento da pena. Mesmo esbarrando em retrocessos, o recurso avançou. E aos poucos voltamos a respirar… literalmente. Muito do mesmo permanecia: as paredes de casa continuavam sendo nossa cela e a porta, nosso carcereiro. Já se vislumbravam, contudo, resquícios de uma liberdade condicional mediante habeas corpus.
O ano passou assim, entre a dúvida e a dubiedade. Não sabíamos o que esperar, embora tenhamos esperado bastante. Saímos e voltamos, de dentro para fora e de volta para dentro. Já desconhecíamos o mundo lá fora, mas ansiávamos por retornar a ele e sentir nos pés a liberdade de ir & vir e no rosto o alívio de respirar livremente. Assim foi que nos tornamos seres híbridos, criaturas no meio termo entre duas realidades que se misturaram: um mundo de átomos e um mundo de pixels.
Em 2022, o retorno ao presencial. Gradual, mas graúdo: pesado demais para carregar sozinho e ao mesmo tempo impossível de compartilhar com outro alguém. Como os porcos-espinhos do filósofo, que no inverno têm de escolher entre o rigor do frio e as feridas da proximidade que dilacera a pele, fazendo sangrar. Dilema da civilização, apreendido por muitos aforismos que denunciam nosso mal-estar, que nem a ciência nem a técnica conseguem apaziguar totalmente, porquanto insuperável por natureza.
Um pé fora de casa. E a cada passo um novo aperto: na garganta, no coração, no pulmão. Aquele sentimento – que vocês conhecem – de desespero que invade o corpo, gela a alma e paralisa as pernas. É então que surge a sensação – que naquele momento parece a mais absoluta e categórica certeza – de que não se consegue ir adiante nem voltar, nem ficar. Nesse momento não é possível existir, apesar de estarmos lá. Sentimos, e sentimos, e sentimos… sem saber o quê nem como, nem por quê.
Enclausurados em uma prisão sem muros, nosso corpo virou nosso cárcere. Fomos de um cárcere a outro.
Queremos então retornar a nossa gaiola, que agora está com a porta aberta, escancarada. Sentimos o impulso de voltar a uma zona que muito nos causou desconforto, mas que agora parecia a salvação frente ao desespero eminente que iminentemente nos aguardava lá fora. Pois já não sabíamos mais estar presentes, isolados em meio a uma multidão de gentes. Estávamos habituados a estar distantes e a nos desligar, a ausentar nossa imagem e a silenciar nosso som.
Como uma criança que se aventura pela primeira vez fora de casa, temos de reaprender a conviver, a viver com um outro diferente de nós e de nossa dor, e que às vezes se empenha em nos entender, em nos amparar – outras vezes nem tanto.
Mas, em meio a tudo isso, um sinal, um resquício de possibilidade de vida, de sair do lugar, de voltar a ir & vir. Pois, se há desespero, existe afeto, e afeto é sentimento sem o qual é impossível criar – e a criatividade é potencial de vida, viver em potência.
Em momentos tão desesperantes, em que não conseguimos sustentar nossas próprias pernas, podemos – podemos! – encontrar força e amparo, ainda que diminutos. Nesse espaço tão pequeno e aprisionante que se torna nosso corpo, o menor toque parece um ato de violência. A menor presença, contudo, também pode vir a ser remédio e cura, já que ela mostra que tem alguém ali, uma presença que nos deixa falar, a presença de alguém que se dispõe a nos escutar. E – falo por experiência – a escuta volta a nos dar sustentação. Sendo escutados, voltamos a desejar viver, ir & vir e respirar.
(*) Adams Friedemann é psicólogo, bacharel em Filosofia e mestrando em Psicologia e Desenvolvimento Humano no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS.