Reviravolta conservadora e horizonte de (im)possibilidades
Temos observado, faz alguns anos, a mudança que vem ocorrendo em inúmeras esferas da vida social, política e cultural no Brasil – sendo a eleição para presidente em 2018 um ponto de inflexão particular nessa transformação. Engana-se, porém, quem considera esse o momento inicial uma “virada conservadora”. Quem considera o processo de retirada de Dilma Roussef da presidência como esse momento, também se engana.
É indiscutível que nessas ocasiões o conservadorismo foi bem-sucedido e alcançou alguns dos seus objetivos — o que o tornou mais visível publicamente e um fenômeno social perceptivo a toda a população. O engodo está em considerar que o Brasil deixou de ser conservador (e autoritário) em algum momento, apenas por existir um governo de esquerda no âmbito federal ou por esse governo ter promovido algumas pautas que visavam diminuir a desigualdade social e racial.
O engodo está em confundir a ocupação do aparelho estatal com as dinâmicas das relações sociais e culturais e em acreditar que basta eleger um/a presidente (ou governador/a ou prefeito/a) para que o país adquira, como num passe de mágica, uma nova face.
É necessário que observemos como as mudanças se tornam visíveis após anos de elaboração em relações que ficam fora do radar da maioria da população e mesmo de muitos pesquisadores. Por isso, um trabalho como o de Camila Rocha (e seu livro Menos Marx, Mais Mises) sobre as origens dessa “nova direita” são tão importantes. Ela nos permite compreender como foi-se articulando em fóruns de internet desde o início dos anos 2000 (ou seja, desde o primeiro governo Lula) uma rede de ultraliberais capaz de promover boa parte das mudanças que vemos hoje, no ano de 2021.
Na mesma direção, o trabalho de Lilia Schwarcz (e o importante livro Sobre o autoritarismo brasileiro) nos leva a perceber que há uma tradição autoritária marcada pelas dinâmicas econômicas, de gênero e raciais, capaz de se manifestar de forma extremamente violenta, apesar da visão historicamente construída do Brasil como um país acolhedor, receptivo e pacífico. E, de maneira ainda mais marcada, o passado violento, explorador e colonial se atualiza constantemente para diversos povos indígenas que se encontram em território nacional.
Das perspectivas desses povos, há pouco de novidade no horizonte. Uma reflexão como a de Taily Terena, João Tikuna e Gabriel Soares nos leva a perceber que, ainda que a ameaça do genocídio se faça presente com maior intensidade nos últimos anos (e a pandemia de covid-19, bem como a política de saúde, apenas a agravou), o medo e a ameaça genocida nunca deixaram de existir e ser uma presença para esses povos — fazendo com que um regime de exceção se naturalizasse como norma.
Não podemos desconsiderar, entretanto, a centralidade adquirida por argumentos morais nos últimos anos. Os embates giram menos sobre a decomposição material e natural do mundo e mais sobre a sua decomposição moral, ou melhor, a decomposição material é tanto justificada quanto criticada em relação às suas posições morais. Eliminar pessoas que são declaradas como inerentemente imorais e corruptas e a instauração de uma divisão da população entre bem e mal vem demandando uma solução quase divina para o país.
Nesse contexto, a demonização de adversários políticos foi crucial para muitas vitórias eleitorais na mesma medida em que muitos se anunciavam como essa salvação messiânica. Não devemos, entretanto, pensar que tal dinâmica e retórica política ocorrem apenas por parte de pessoas com um determinado pertencimento religioso, mas perceber que esta é uma das facetas da radicalização que temos observado.
Vemos que o que parece novo é, quando analisado com parcimônia, um desdobramento e uma radicalização de um passado violento e autoritário. A novidade se liga, mais uma vez, ao velho. A ruptura é desdobramento da continuidade. É isso que torna nosso cenário tão complexo e nosso horizonte tão (im)possível de entrever.
Em janeiro de 2019, diversas pesquisadoras foram convidadas a pensar no que poderíamos esperar do que viria pela frente, isto é, o que era possível ver no horizonte. E, ainda que ninguém pudesse adivinhar que enfrentaríamos uma pandemia, o que estava colocado desde então era uma imprevisibilidade radical (como um de nós definiu em artigo recente). Ou seja, apesar de sabermos que haveria mudanças, não era possível ainda saber a extensão e o impacto dessas mudanças.
O nosso horizonte de possibilidades passou, cada vez mais, a incorporar o impossível. Essa dialética entre um passado conservador e autoritário que se prolonga no presente e uma novidade e imprevisibilidade sobre o que é possível que esse passado produza no presente nos levou a preferir dizer, na Introdução do livro A Horizon of (Im)possibilities, que o Brasil experimenta, nos últimos anos, uma “reviravolta conservadora” [conservative return].
O livro, que está disponível para download gratuito no site da editora e tem lançamento virtual no dia 13 de dezembro, traz muitas outras minuciosas análises de situações específicas, com capítulos sobre a manifestação política em pequenas (Andreza A. de Sousa Santos) e grandes cidades (Jeff Garmany); por situações religiosas (David Lehmann), raciais (Graziella Moraes da Silva), financeiras (Jessica Sklair); e pelas lutas de acesso a terras e direitos por quilombolas (José M. Arruti e Thaisa Held) e povos indígenas.
(*) Eduardo Dullo é professor do Departamento de Antropologia e do PPG em Antropologia Social, e coordenador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) da UFRGS.
(*) Katerina Hatzikidi é antropóloga social pela Universidade de Oxford.