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Saúde mental e ambiente acadêmico de orientadores e orientandos

Lisiane Bizarro (*) | 14/07/2022 08:30

Meu mestrado levou mais tempo do que o esperado: fui atropelada e tive fratura nas pernas em setembro do primeiro ano. A defesa do projeto de dissertação foi arranjada pra acontecer na sala da casa dos meus pais, e eu estava sentada na minha cadeira de rodas. Fiz o doutorado no exterior, sendo que nos dois primeiros anos eu estava longe do meu esposo, que também era pós-graduando – no Brasil. O e-mail se popularizou a tempo de salvar as dificuldades de comunicação inerentes à década de 90, quando uma ligação telefônica internacional custava os olhos da cara, em dólar. No meio do doutorado, meu orientador trocou de emprego, e eu fiquei alguns meses à deriva, partindo para um plano B de coleta de dados.

Participando da Associação de Estudantes e Pesquisadores no Reino Unido, conheci muitos casos de colegas que abandonaram o sonho de concluir o doutorado ou que simplesmente sucumbiram com estressores que desafiavam a saúde mental. Como psicóloga, entendia que a vida adulta por si só já trazia seus desafios, mas o doutorado era algo que eu havia procurado. A instituição onde eu fazia o doutorado oferecia oficinas sobre habilidades acadêmicas e como terminar o doutorado, e meu novo orientador viabilizou meus projetos, deu condições para escrever em paz e era impecável na correção do meu texto. No entanto, como chefe de departamento, ele tinha uma agenda cheia e pouco tempo para conversar. Foi com a rede de apoio daqueles que passavam pelo mesmo processo que terminei, com algum atraso, o doutorado.

Já como professora na UFRGS, nosso PPG enfrentou a interdição do prédio do Instituto de Psicologia por dois anos. Grupos de pesquisa que dependiam de laboratórios para a coleta de dados, como o meu, foram colocados em uma situação de incerteza sobre a viabilidade de projetos. Nessa época, a saúde mental e os relacionamentos de todos os servidores e estudantes foram desafiados. O trabalho continuava para todos, só que sem espaço físico. Problemas de saúde mental entre pós-graduandos eram notícia no mundo, e nossos estudantes estavam sob um estresse intenso. Eu consultei os colegas do Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE) sobre um apoio institucional dedicado aos pós-graduandos que pudesse abordar desafios à saúde mental enfrentados por eles. Apesar do NAE não ter este serviço, tornou-se o parceiro para o oferecimento da oficina Termine sua Tese, que depois virou um MOOC (Massive Open Online Course, curso massivo, aberto e online) no Lúmina.

A oficina Termine sua Tese foi inspirada no livro da psicóloga americana Alisson Miller, Finish Your Dissertation Once and For All: How to Overcome Psychological Barriers, Get Results, and Move On with Your Life. Diferentes de outros livros voltados para o processo de terminar a tese, este não tratava do processo de escrita ou do gerenciamento do tempo, mas principalmente de psicoeducação. Além disso, como orientadora, empatizei com os desafios dos jovens adultos (em sua maioria) que dedicam anos importantes de suas vidas investindo em uma formação que tem um valor pessoal e intelectual para eles, enquanto a vida segue apresentando desafios de todo o tipo. Então, o objetivo do Termine a sua Tese é reconectar o doutorando com seus valores, atualizar sua narrativa sobre o doutorado, sobre si, sobre os outros e sobre o mundo, reconhecer a importância do autocuidado e de conciliar o doutorado com outros aspectos da vida. Usamos o humor para manejar as emoções difíceis que naturalmente aparecem.

A descoberta mais impactante das oficinas presenciais era de que ninguém estava sozinho, ou seja, de que outros passavam por problemas semelhantes. Muitos sugeriam os “doutorandos anônimos” e fui convidada pelos pós-graduandos para falar sobre o Termine sua Tese para alunos e professores de vários PPGs, na UFRGS e fora dela. Eles queriam que os orientadores soubessem…

E então veio a pandemia. Pela primeira vez, recebi alguns convites de professores pra falar do Termine sua Tese para os alunos. Mas eu disse que naquele momento não seria possível, que era preciso que cada um acolhesse as necessidades de cada pós-graduando e que talvez terminar a tese não fosse uma prioridade para todos. Depois percebi que os colegas professores poderiam estar com dificuldades frente às incertezas e à incontrolabilidade do contexto da pandemia, e por isso queriam o Termine sua Tese. Aí segui a sugestão de muitos doutorandos. Ofereci uma oficina online de sensibilização para mentoria a orientadores de doutorado pela EDUFRGS, o MentOrientador.

A mentoria acadêmica reúne competências para promover orientação e motivação para atingir objetivos em comum (título de doutor, tornar-se um acadêmico); instrumentalizar para formulação do problema de pesquisa, delineamento e método; oferecer perspectiva acadêmica, social e ética aos objetivos da pesquisa; oferecer orientação, apoio e estrutura para realização do projeto. Na oficina MentOrientador, resgatamos e fortalecemos essas competências, reconectamos os orientadores com seus valores, estimulando a empatia, o autocuidado e a comunicação com o time de pesquisa. Os orientadores também se surpreendem em saber que os colegas passam por problemas semelhantes e que, afinal, somos todos apenas humanos.

(*) Lisiane Bizarro é professora titular do Instituto de Psicologia e professora permanente do PPG Psicologia.

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