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Segurança alimentar e de alimentos na pandemia

Maria Sylvia Macchione Saes (*) | 26/04/2020 10:06

A pandemia de covid-19 tem impacto significativo nas transações e na oferta das cadeias de alimentos. Pela primeira vez, os líderes das três principais organizações multilaterais de alimentação, comércio e saúde − FAO, OMC e OMS − declaram conjuntamente o risco de uma crise alimentar. As incertezas sobre a disponibilidade de alimentos podem levar a uma onda de restrições ao comércio e desafiam os organismos internacionais de regulação.

Além do grave problema de oferta de alimentos (food safety), a pandemia também coloca em evidência a questão da segurança do alimento (food security), ou seja, a segurança do que estamos comendo, em termos de risco à saúde. Crises recentes como a da doença da vaca louca e da gripe suína tiveram fortes impactos em cadeias produtivas e na disponibilidade de alimentos.

Neste cenário de grande incerteza, como o Brasil − um dos maiores produtores de alimentos do mundo − poderia se posicionar e contribuir de forma a reduzir essas incertezas?

A pandemia chama a atenção para o impacto dos desequilíbrios ambientais sobre a saúde humana. Há crescentes evidências de que as mudanças ambientais têm papel importante para o surgimento de doenças infecciosas. Cerca de 70% dessas doenças se originaram das complexas relações entre animais (selvagens/domésticos) e humanos, como por exemplo: a gripe aviária asiática H5N1, H5N2, múltiplas variantes da gripe suína (H1N1, H1N2), Ebola, Campylobacter, vírus Nipah, febre Q, hepatite E, Salmonella enteritidis, febre aftosa, entre outras.

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em recente declaração, afirmou que o surto da covid-19 é resultado da degradação de habitats selvagens. Essa degradação leva a processos evolutivos que aceleram a transmissão de doenças, já que os patógenos se espalham mais rapidamente para rebanhos e seres humanos[1]. No Brasil são conhecidas as dificuldades de barrar o comércio ilegal de animais selvagens, assim como o consumo de tartarugas, antas, entre outros. No caso da produção comercial, em especial a produção de animais em grande escala, crescem as preocupações das entidades de saúde pública pelo uso intensivo de antibióticos. A necessidade de administração de antibióticos diminui a resistência antimicrobiana e a eficiência para combater doenças humanas responsáveis pela morte de milhares de pessoas no mundo todo. Os antibióticos são excretados na urina e nas fezes e ingeridos pela população, uma vez que os sistemas de tratamento de água não conseguem eliminá-los.

A pandemia deve intensificar a adoção de normas técnicas, sanitárias e fitossanitárias com o olhar à segurança do alimento. Além disso, há um reconhecimento crescente de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelas Nações Unidas, devem considerar de forma conjunta a produção de alimentos, a conservação da biodiversidade, a mitigação das mudanças climáticas e a saúde pública. Sem uma abordagem integrada que vise a diminuir os impactos da mudança ambiental e os consequentes riscos para a humanidade, dificilmente os países alcançarão os ODS. Por isso, os países (65) envolvidos na Agenda Global de Segurança em Saúde (GHSA) estão finalizando um plano estratégico para os próximos cinco anos com o objetivo de adotar ações para prevenir, detectar e responder a surtos de doenças infecciosas.

No Brasil, há iniciativas crescentes de investimento em tecnologias menos agressivas ao ambiente. Vemos em curso o desenvolvimento de uma expertise em tecnologias de produção, que mantêm o nível de produtividade, com menor uso de produtos químicos e maior de produtos orgânicos, organominerais e naturais (por exemplo, a produção de carnes orgânicas). Essas iniciativas surgem a partir de grandes e pequenas empresas ou produtores rurais, com ajuda de certificadores e de instituições públicas (veja, por exemplo, Embrapa). Há casos de grandes empresas que capacitam seus fornecedores (produtores rurais) para atender à demanda por produtos mais naturais. A partir de agora, mais do que nunca, a questão da segurança do alimento remeterá à rastreabilidade e à adoção de boas práticas agrícolas. O controle da informação será ainda mais essencial.

Um ponto forte da estrutura agrícola brasileira é a grande quantidade de produtores localizados nos cinturões verdes das cidades que abastecem os centros urbanos. Neste momento de restrição de circulação de trabalhadores, a utilização de mão de obra familiar também viabiliza a produção com menor custo. Políticas públicas que priorizem centrais de abastecimento e financiamento para os produtores familiares, como o Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) atualmente se mostram importantes para viabilizar o fornecimento de frutas e legumes. Trata-se, portanto, de uma oportunidade para, por meio de políticas públicas, garantir a segurança alimentar das grandes cidades, inclusive de quem tem menos renda.

As preocupações com a sustentabilidade e com mudanças climáticas têm sido o principal mote das preferências dos consumidores. Por conta disso, o Brasil, como um dos líderes globais na venda de alimentos, tem que estar atento. A atual posição do país refletida pela manifestação do presente Governo Federal de menor prioridade à questão ambiental atrai crescente pressão internacional. Tais pressões exigem que o setor de alimentos no Brasil adote um posicionamento claro em relação a questões como mudanças climáticas e saúde humana, adequando suas práticas produtivas aos padrões estabelecidos internacionalmente.

Apesar do retrocesso recente, nos últimos anos o Brasil sempre figurou com destaque em ações de defesa da sustentabilidade, tanto ambientais como sociais, com a participação ativa nos principais órgãos que regulam a comercialização de alimentos: a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Codex Alimentarius.

Não faltam exemplos de ações que caminhavam na direção de preocupações sustentáveis e que poderiam servir de reflexão. Um deles é a Moratória da Soja, em que as entidades envolvidas e seus associados se comprometiam a não comercializar ou financiar soja cuja origem fosse de áreas desmatadas. Outro é a criação da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura. Seu objetivo está diretamente associado à promoção de práticas produtivas mais sustentáveis, que abarca organizações do agronegócio, organizações não governamentais da área de meio ambiente e clima, representantes do meio acadêmico, associações empresariais setoriais e empresas. Crescem também iniciativas financeiras mundiais para apoiar ações sobre a temática ligada ao desenvolvimento sustentável (por exemplo, os chamados social bonds), que aportam recursos para atividades sociais e sustentáveis.

Em resumo, quando retornarmos para a vida em sociedade, há uma enorme e intensa agenda de oportunidades e questões. De modo geral, como o Brasil poderia manter sua posição como grande exportador de alimentos? Como essa posição poderia ser mais elevada qualitativamente e de forma pró-ativa na criação de bases para um mundo próspero e com segurança? Em especial, quais políticas públicas e privadas devem surgir levando em conta as preocupações atuais em sustentabilidade?

O desdobramento dessa agenda naturalmente demanda instituições fortes que atuem na intermediação dos conflitos entre os que desejam a transição para a sustentabilidade e os que preferem manter o status quo. Estas instituições, se bem concebidas, irão trazer segurança para as mudanças e efetividade para o cumprimento de contratos conciliando interesses e criando oportunidades.

(*) Maria Sylvia Macchione Saes possui graduação em Ciências Econômicas, mestrado e doutorado em Economia pela USP (Universidade de São Paulo). Atualmente é Livre Docente da USP.

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