Sinistros de trânsito também são acidentes do trabalho
As rodovias brasileiras e o modelo de transporte de mercadorias do País concorrem para uma combinação de fatores cujos resultados são expostos por uma contabilidade macabra. Somente em 2023, a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) registrou 76,6 mil ocorrências nas estradas sob concessão pública, e a Polícia Rodoviária Federal (PRF), 5,6 mil mortes.
É fundamental compreender que a maioria desses eventos, porque evitável, deve ser classificada como “sinistros”. Acidente, ao mesmo tempo que descreve situações imprevisíveis para se referir a colisões, atropelamentos e outras ocorrências viárias, isenta a adoção de medidas de aperfeiçoamento.
Sinistros de trânsito, devido a uma combinação de fatores, são previsíveis. No Brasil, o problema é agravado pela manutenção precária das rodovias, pavimentação ruim, ausência de sinalização e infraestrutura deficiente, marcada pela ausência de acostamentos seguros e iluminação insuficiente. Tais fatores são amplificados quando aliados à dependência do país ao transporte rodoviário, que eleva o tráfego nas estradas e a probabilidade de sinistros.
A forma como o mercado se organiza é elemento decisivo para a ocorrência de sinistros. As longas distâncias a percorrer para escoar insumos e produção pelo país, somadas à inexistência de grandes estoques e pressão por cumprimento de prazos exíguos, impõem comportamentos imprudentes — como excesso de velocidade, ultrapassagens perigosas e uso de drogas contra o sono — aos condutores. A fiscalização pouco eficiente e a carência de educação para o trânsito completam o cenário.
Uma política de prevenção de sinistros de trânsito eficaz deve contemplar iniciativas que incluam melhoria da infraestrutura rodoviária, com manutenção preventiva e regular, pavimentação de melhor qualidade, melhoria da sinalização e da iluminação, instalação de redutores de velocidade e implementação de áreas de escape e barreiras de proteção em áreas de risco.
A inspeção de segurança veicular rigorosa e a organização dos processos produtivos, com adoção de prazos viáveis e que não exijam que caminhoneiros se submetam a jornadas exaustivas, são questões relevantes que devem ser contempladas. A adoção de tecnologias mais avançadas nos veículos, conjugada com ações contínuas voltadas à educação para o trânsito, que deve ser integrante à grade curricular das escolas, são outras medidas inerentes à melhoria da segurança nas estradas.
Educação no trânsito - Dentre as ações educativas, destaca-se a campanha Maio Amarelo, que inclui o tema da segurança e dos sinistros nas estradas na pauta do debate nacional. Trata-se de iniciativa fundamental, mas que precisa ser ampliada. As estatísticas comprovam que o Brasil carece de esforços contínuos e regulares destinados à formação de todas as pessoas que utilizam ou vão utilizar as estradas no futuro. É a educação que sedimenta a consciência, desperta a cidadania e estabelece a compreensão da responsabilidade de cada indivíduo.
Não se pode deixar de considerar que muitos sinistros de trânsito são também acidentes do trabalho, apesar de não serem notificados como tal. Uma campanha de prevenção mais assertiva, que inclua a relação entre sinistros de trânsito e a precarização do trabalho dos motoristas, precisa ser adotada. Ela deve ser abrangente e envolver empresas de transporte, governo, motoristas e a sociedade.
A melhorias das condições de trabalho passa pelo dever de cumprimento das leis que regulamentam a jornada de trabalho dos motoristas. É preciso parar de naturalizar as jornadas exaustivas dos motoristas — não raro apoiadas em substâncias químicas inibidoras do sono — para viabilizar entregas em prazos exíguos.
Todas as irregularidades elencadas foram constatadas pelo Ministério Público do Trabalho na Operação Jornada Legal, realizada em novembro de 2023, em parceria com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). São problemas que se sedimentaram, se repetem ao longo dos anos e já se integraram à paisagem das inúmeros estradas brasileiras. Superá-los exige uma conjunção de esforços que seja capaz de promover uma cultura de segurança e valorização da vida, com foco no bem-estar das pessoas que utilizam, trabalham e trafegam nas estradas brasileiras.
(*) Cirlene Luiza Zimmermann é coordenadora nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho e da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Codemat) do Ministério Público do Trabalho.
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