Transtorno bipolar e sistema nervoso
O transtorno bipolar afeta aproximadamente 2% da população mundial e se caracteriza pela presença de episódios alternados de humor. Possui uma grande complexidade clínica, com sintomas clínicos heterogêneos, e cada vez mais evidências sugerem que o transtorno bipolar pode apresentar um curso progressivo em uma parte dos pacientes. As mudanças clínicas e biológicas associadas aos episódios de humor tornam-se mais pronunciadas com o decorrer da doença, aumentando a vulnerabilidade do paciente ao estresse e a novos episódios que, por sua vez, reforçam o ciclo de progressão da doença.
O Laboratório de Bioquímica Celular da UFRGS, coordenado por mim, e o Laboratório de Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas, coordenado pelo psiquiatra e professor Flávio Kapczinski, desenvolveram, em 2016, o primeiro estudo que mostra a toxicidade do soro de pacientes em diferentes estágios do Transtorno Bipolar em células neuronais humanas. Desde então, os estudos evoluíram para melhor entender a progressão da doença, incluindo parceiros internacionais, como a Universidade McMaster (Canadá).
Trabalhos recentes apontam que os episódios repetidos de humor estão associados ao aumento do prejuízo funcional e cognitivo e ao desenvolvimento de demência em um subgrupo de pacientes com transtorno bipolar. Uma pesquisa que avaliou mais de 1 milhão de indivíduos residentes em Ontário, no Canadá, mostrou que indivíduos com transtornos de humor apresentaram taxas elevadas de incapacidade funcional e aqueles com transtorno bipolar apresentaram taxas maiores de incapacidade funcional em comparação aos indivíduos com depressão. Uma recente meta-análise do grupo de pesquisa do professor Flávio Kapczinski mostrou que indivíduos com transtorno bipolar apresentam um risco quase três vezes maior de desenvolver demência do que indivíduos sem transtorno bipolar. Em paralelo, os autores mostraram que o tratamento com lítio é capaz de diminuir o risco de se desenvolver demência entre os indivíduos com o transtorno.
Juntamente com as alterações clínicas, ocorrem alterações biológicas na periferia e no sistema nervoso central associadas aos episódios de humor recorrentes. Evidências apontam para o papel do sistema imune nos mecanismos celulares e moleculares subjacentes ao transtorno bipolar, com foco nas células do sistema imunológico e nas citocinas inflamatórias. Nesse sentido, estudos indicam que os pacientes com transtorno bipolar em um estágio mais avançado de progressão da doença apresentam aumento dos níveis de marcadores inflamatórios, como o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa). O grupo de pesquisa do professor Flávio Kapczinski está em fase de publicação de duas meta-análises focadas nas alterações nos níveis de TNF-alfa e Interleucina-6, reforçando o envolvimento da inflamação com os episódios de humor.
Sabe-se que a inflamação no sistema nervoso central desempenha um papel importante nos episódios de humor recorrentes. Em uma revisão da literatura publicada recentemente e liderada pela pesquisadora Bianca Wollenhaupt de Aguiar, doutora em Bioquímica pela UFRGS e que atualmente trabalha na Universidade McMaster, os autores discutem as vias biológicas associadas à progressão da doença, incluindo os potenciais mecanismos pelos quais a inflamação do sistema nervoso central pode estar ocorrendo.
Uma possibilidade discutida pelos autores seria a disfunção da barreira hematoencefálica. Essa barreira conecta o sistema nervoso central e os tecidos periféricos e tem como função regular a troca de substâncias entre eles. Sabe-se que as citocinas pró-inflamatórias presentes na periferia podem promover alterações nessa barreira, entre elas o aumento da permeabilidade, causando a migração de células do sistema imune e fatores inflamatórios para o cérebro. Isso pode levar a ativação das células imunes do sistema nervoso central, como a microglia e os astrócitos. Após múltiplos episódios de humor, a liberação excessiva de citocinas inflamatórias e a ativação recorrente das células imunes do sistema nervoso central (microglia e astrócitos) podem levar à inibição do processo de formação de novos neurônios e à alteração na plasticidade sináptica – termo que corresponde à capacidade de o sistema nervoso central responder de forma adaptativa a diferentes estímulos; e potencializar um aumento da permeabilidade da barreira hematoencefálica, criando um ciclo vicioso. Em conjunto, essas alterações podem levar ao aumento do prejuízo funcional e cognitivo, podendo promover mudanças mais pronunciadas nos marcadores biológicos periféricos e no cérebro.
Os pesquisadores mencionam que ainda não estão completamente compreendidos os mecanismos biológicos associados à progressão do transtorno bipolar e ainda não se sabe por que apenas um subgrupo de pacientes desenvolve um curso progressivo com desfechos clínicos mais graves. O próximo passo nas pesquisas é buscar entender a complexa heterogeneidade no âmbito biológico, o que pode auxiliar no conhecimento relacionado às apresentações clínicas heterogêneas e na melhor compreensão dos efeitos dos episódios de humor recorrentes em pacientes com transtorno bipolar.
(*) Fábio Klamt é professor associado do departamento de Bioquímica e orientador dos programas de pós-graduação em Bioquímica e Ciências Médicas da UFRGS.