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Cidades

À distância, famílias de MS não acreditam mais em justiça no caso da Boate Kiss

Três dos 242 mortos da tragédia nasceram em MS; famílias acompanham desdobramentos, como decisão do STJ de adiar júri

Silvia Frias | 16/03/2020 06:33
Eduardo, pai de David, cercado pela foto dos filhos. "É uma saudade eterna" (Foto: Henrique Kawaminami)
Eduardo, pai de David, cercado pela foto dos filhos. "É uma saudade eterna" (Foto: Henrique Kawaminami)


A fachada grafitada e colorida invocando Justiça aos 242 mortos na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), é a única barreira para o interior enegrecido pela fumaça e destruído pelo fogo, cenário mantido até hoje, sete anos após incêndio, ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013.

A casa noturna em escombros também não deixa de ser a representação da esfacelada expectativa de três famílias residentes em Mato Grosso do Sul, que perderam parentes no incêndio, em relação ao julgamento dos quatro réus.

A reportagem começou a ser elaborada a partir do julgamento de um dos quatro réus, que estava marcado para segunda-feira, 16 de março, em Santa Maria. Porém, na sexta-feira (13), o STJ (Superior Tribunal de Justiça) adiou o júri até que ocorra decisão do desaforamento pedido pelos outros acusados, que significa a mudança de cidade para realização da audiência.

Uma das vítimas com famílias em MS foi David Santiago Souza, acadêmico de Odontologia da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria. Ele havia completado 22 anos no dia 25 de janeiro e resolveu ir à festa universitária “Agromerados”, na Boate Kiss, para comemorar a data com amigos. Quando um deles resolveu ir embora, David decidiu ficar.

“É uma saudade eterna, não tem como não lembrar pelo menos uma vez por dia, é filho, né? David teria 29 anos hoje, é um sentimento que não tem como falar, só desejo que ninguém sinta o que estou sentido”, disse o enfermeiro Eduardo Pena de Souza, 61 anos. 

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Desde 2015, Eduardo vive em Dourados, onde passou no concurso no HU (Hospital Universitário) e mora com o filho Pedro, 35 anos, que cursa Medicina. Nas folgas, volta a Campo Grande, onde ainda reside com a esposa, a técnica de enfermagem Jânea Santiago de Souza, 61 anos. “Mãe é mãe, ela chora todos os dias, falou no David, ela chora”.

À distância, os pais de David souberam do desmembramento do processo e do agendamento do primeiro julgamento, o de Luciano Augusto Bonilha Leão, em Santa Maria. O réu era produtor musical da banda Gurizada Fandangueira e seria julgado por homicídio simples (242 vezes consumado, pelo número de óbitos, e 636 tentados, este, pelo número de feridos). Os outros réus são Elissandro Callegaro, Mauro Londero Hoffmann (sócios da boate) e Marcelo de Jesus dos Santos (músico da banda). Agora, não há data para nenhum julgamento e todos respondem em liberdade.

“Em função de morar em MS, da tragédia, a gente sofre demais, eu terminei não me engajando, essa justiça dos homens é muito falha, demorada, não me satisfaz; o que acontecer, não evolui muito meu sentimento”, disse o enfermeiro.

Segundo o enfermeiro, a família não pretende acompanhar o julgamento de perto. “Eu acho que a vida deles [réus] já não deve ser boa, viver nesse tormento, de terem sido causadores dessa tragédia”, disse, mas sem deixar de apontar a responsabilidade deles. “Foram gananciosos, tantas irregularidades, foi somatório de erros que levou a essa tragédia”.

 

Ana Paula viajou com uma amiga para sul do País (Foto/Reprodução)
Ana Paula viajou com uma amiga para sul do País (Foto/Reprodução)

Para o vigilante José Rodrigues Filho, 52 anos, ficou a lembrança da última conversa com a filha, a vendedora Ana Paula Rodrigues, que tinha 21 anos. “Ela disse que ia para a praia, em Santa Catarina”, contou, emocionado. “É difícil, é muito difícil”.

Ana Paula morava em Mundo Novo e trabalhava em uma loja em Salto del Guairá. Foi com uma amiga para o sul do País e estava em cidade próxima de Santa Maria, a primeira viagem longe da família. Aceitou convite de casal de amigos e foi para boate. José foi até a cidade para buscar o corpo da filha, mas não quis ver a boate. “Ate hoje, nem procuro ver aquilo lá”.

Depois do incêndio da Boate Kiss, a família enfrentou outra tragédia. A mãe, Mônica Aparecida de Paiva Rodrigues, morreu em 2016. Segundo José, a ex-mulher já tinha quadro de depressão, que se agravou após a morte da filha, além de pressão alta e doença neurológica.

Assim como Eduardo, também é descrente sobre a efetividade do julgamento. “Sei lá, é difícil, tem um bom tempo e a nossa justiça é complicada, né?, não tem muita expectativa”.

A enteada dele e irmã de Ana, Adriana Amanda de Paiva, 33 anos, chegou ir a Santa Maria para acompanhar o processo, a última, há dois anos. “Eu acho que eles podem ser condenados, pela grandiosidade da tragédia, seria vergonhoso para a Justiça, como se não fosse algo de tanta gravidade”, disse, acrescentando considerar frustrantes os entraves jurídicos. “A gente coloca pensamento na Justiça de Deus, essa a gente sabe que não falha”.

Flávia foi à festa da turma do namorado, Luiz. Os dois morreram no incêndio (Foto/Reprodução)
Flávia foi à festa da turma do namorado, Luiz. Os dois morreram no incêndio (Foto/Reprodução)

A mais jovem entre as vítimas de MS foi Flávia de Carli Magalhães, 18 anos. Nascida em Chapadão do Sul, foi criada pelos avós, após a morte da mãe. A prima, Franciele Schultz, 37 anos, tem como lembrança da “prima-irmã”, a festa de fim de ano que a família passou em MS. “Era sempre sorridente”.

Depois das festas, Flávia voltou a Palmeiras das Missões e, naquela noite, acompanhou o namorado na festa organizada pela turma dele. O rapaz, Luiz Fernando Donati, também morreu no incêndio.

“Para falar a verdade, não sei se tenho expectativa de nada não, sabia? A nossa lei é fraca”, disse. Franciele pretende acompanhar julgamento à distância. “Não vai trazer de volta”.

Na fachada grafitada, os dizeres “O sistema envenena, a corrupção mata, a impunidade enlouquece – 7 anos” (Foto/Reprodução)
Na fachada grafitada, os dizeres “O sistema envenena, a corrupção mata, a impunidade enlouquece – 7 anos” (Foto/Reprodução)
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