Aos mortos pela covid-19, o adeus dói à distância, até pela tela do celular
Entre as famílias das 18 vítimas do coronavírus em MS, também há quem ainda não aceitou que a covid-19 tenha causado a morte
Adeus sem despedida. É o que marca o fim da trajetória das pessoas que morrem nesses tempos de covid-19. A doença chega sem ninguém ver e, com rapidez, leva embora quem se ama.
Sem velório, o funeral é rápido, de caixão fechado, com menos de 5 pessoas, sem tempo de acarinhar pela última vez. Nas histórias que se cruzam nesta pandemia, há quem não aceite a covid como motivo da morte e quem teve de dizer adeus à distância, pela tela do celular.
Já são 18 vidas em Mato Grosso do Sul levadas pela doença, segundo os registros oficiais. O mais novo com 38, o mais velho com 95, em uma cronologia iniciada no dia 31 de março e atualizada nesta terça-feira.
Bélgica e São Paulo - A primeira delas foi da merendeira Eleuzi Silva Nascimento, de 64 anos. Ela morava em Batayporã, cidade a 308 Km de Campo Grande. Lá, também residia Sônia Regina dos Anjos, de 66 anos, a segunda pessoa que a covid-19 levou embora no Estado.
Por incrível que pareça, elas não estiveram próximas e se contaminaram em diferentes situações. A primeira, ao ter contato com parentes que vieram da Bélgica, e Sônia, ao viajar a trabalho para São Paulo.
Uma coisa, no entanto, foi comum: a pressa em se realizar o enterro.
Eleuzi, por exemplo, teve o corpo transportado em caixão lacrado no Hospital da Cassems em Dourados, em 31 de março, e seguiu rapidamente até o Cemitério Municipal de Batayporã, sem velório e sem tempo para despedidas. Um genro e uma neta vindos de Cuiabá (MT), além um representante da família, acompanharam, mas à distância.
O mesmo ocorreu com Sônia, que faleceu no Hospital Regional de Nova Andradina em 6 de abril. O corpo seguiu direto para o cemitério de Batayporã e foi enterrado na presença do marido e de dois sobrinhos, também distantes.
Sem honras - Quem também não pôde ter um velório foi o idoso José Francisco Marques Neto, 87 anos. Primeiro prefeito da cidade de Brasilândia e vereador por dois mandatos em Três Lagoas, o filho dele, Herivelton de Araújo Marques, 60 anos, lamenta que o pai não possa ter sido homenageado como deveria na morte.
“Meu pai era um homem que tinha história, conhecido no Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul, e morreu assim, com a gente correndo para enterrá-lo, sem ninguém no enterro e sem nenhuma honra”, disse.
Homem ativo, José Francisco foi a 6ª morte por coronavírus em MS e faleceu no Hospital Auxiliadora, em Três Lagoas, município que fica a 325 Km distante de Campo Grande.
Para o filho, no entanto, há dúvidas de que pai tenha morrido com a doença. “Depois que ele foi internado é que ele piorou”, falou Herivelton ao Campo Grande News, alegando que o pai foi infectado na unidade de saúde e não antes.
Separação - Madalena Aparecida Ferreira, 76 anos, morava em Paranaíba e faleceu no dia 24 de abril na Santa Casa da cidade, que fica a 407 Km de Campo Grande.
Ela deixou o marido, de 81 anos, que também foi infectado pela doença, mas a superou e sobreviveu.
De acordo com o diretor clínico da Santa Casa Paranaíba, Pedro Eurico Salgueiro, tanto a a mulher, quanto o marido passaram pelo mesmo tratamento, mas apresentaram resultados distintos.
O enterro de Madalena também foi às pressas e sem cerimônia em um município que ainda não tinha visto de perto o quanto esse vírus é violento..
Cremado - A nona pessoa a perder a vida com covid-19 no Estado foi o caminhoneiro Antoninho Muller, de 56 anos. Morador de Dourados, ele faleceu em Araguaína (TO), longe da família, em 25 de abril.
Ao site da cidade, o filho do caminhoneiro, Anderson Ribeiro Muller, que mora em Chapecó (SC), disse que ao falar com o pai por mensagem, antes dele falecer, Antoninho havia lhe dito que não queria ser transferido para Araguaína, mas voltar para Dourados.
“Ele disse que estava bem, que iria sair dessa e que não estava querendo ser transferido [para Araguaína]. Queria ir embora para Dourados, a cidade dele”, contou.
Não houve tempo para isso. “A gente pedia para ele ir ao médico, mas era teimoso. Só foi depois que o patrão dele pediu”, Perdi meu herói, meu amigo”., resumiu o filho.
Grande amigo - Patrocínio Magno Portocarrero Naveira, 74 anos, era dentista, conhecido no Estado e querido por muitos. Com fôlego de nadador, o primeiro sintoma foi sentido ao perder a respiração durante um mergulho na piscina, algo que fazia diariamente sem problemas.
O amigo conhecido como "Lorde", pela educação e calma inabaláveis, foi o primeiro paciente na UTI do Hospital da Unimed, em Campo Grande. Apesar de todos os cuidados em um tempo em que a pandemia não sacrifica muito, ele morreu 38 dias depois.
Entrou na estatística como 10ª vítima de covid-19 em MS, no dia 3 de maio. Mas nem de perto é um numeral para a família, muito menos para a esposa. Laís também foi diagnosticada com covid-19, mas, 18 anos mais nova, superou a doença. "A covid-19 foi a pior experiência de toda minha vida. Perdi meu melhor amigo, meu confidente, meu companheiro por 33 anos"
Anônimo - “Ele era parceiro. Sempre estava comigo para me ajudar”. Assim, o filho da 12ª vítima de covid-19 classificou o pai, falecido e enterrado em Barretos (SP). O jovem, de 37 anos, não quis se identificar, pediu para não ter o pai exposto, com medo do preconceito na cidade. Mas sustentou que, apesar dos 62 anos, o ajudava sempre que precisava.
Internado no Hospital de Barretos para tratamento de câncer no cérebro, o pai batalhador acabou infectado na unidade de saúde. Para o filho, no entanto, foi muito mais o câncer que a covid-19 que acabou levando o pai embora, em um 1º de maio.
“Pode ser que acelerou, pode ser que não. Mas quando fomos com ele pro hospital, já sabíamos que podia ser por uma semana, um mês, dois meses. Questão de tempo”, sustentou o jovem, ao ser questionado se o novo coronavírus acelerou ou não a morte do pai, que morava em Vicentina, a 247 Km de Campo Grande.
Pelo celular - Alexandre Miranda Cardamone, de 33 anos acompanhou o enterro do pai pela tela do celular.
Falecido em 12 de maio em Três Lagoas, André Cardamone Júnior, 58 anos, foi transportado as pressas para Brasilândia, onde morava e entre falecer e ser enterrado, foram menos de quatro horas.
Com filhos e outros parentes isolados por também estarem infectados pelo novo coronavírus, um irmão acompanhou, de longe, o enterro.
“Mesmo que não estivéssemos em isolamento, a despedida teria que ser rápida, com poucas pessoas”, comentou Alexandre.
Era o "Júnior da Marcenaria", homem forte, de sorriso fácil. “Até umas semanas atrás estávamos fazendo enfrentamento à dengue, mutirão e estávamos conseguindo reduzir os números da cidade”, relembrou o filho, que acredita que a covid-19 é mais grave que a doença transmitida pelo Aedes aegypti.
O mais novo - Antônio Denadai, de 74 anos, perdeu o filho Weslley Utinoi Denadai, de 38 anos, para a covid-19 no último dia 14 de maio, em Campo Grande. Weslley fez 38 anos no dia 23 de abril e tinha comorbidades – diabetes, hipertensão e obesidade –, segundo a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde Pública).
O que mais dói para a família é que tudo indicava que Wesley teria alta logo e chegou a sair da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e ser encaminhado para unidade semi-intensiva pois havia apresentado melhora.
No dia da morte, ao Campo Grande News, o pai afirmou que “ele me ligou, ontem ou anteontem, e falou 'pai, me tira daqui'. A gente achava que até o fim de semana, ele estaria em casa”. A esperança não se confirmou e Wesley, como todas as outras vítimas, teve que ser enterrado às pressas.
Portugal - O corretor de imóveis Jairo da Fonseca Duarte, 53 anos, era conhecido como "Portugal", e, apesar de morar em Três Lagoas, onde faleceu no dia 15 de maio, a família se formou em Dourados. Parentes dizem que ele procurou o Hospital Auxiliadora no começo de maio, quando foi diagnosticado com dengue. Em 12 de maio, no entanto, o quadro dele se agravou. Internado, foi submetido ao teste de covid-19 cujo resultado foi positivo.
De acordo com a SES (Secretaria de Estado de Saúde), a vítima foi internada no dia 12 de maio, quando a doença foi notificada. Ele não tinha vínculo de contaminação e era diabético.
Sogra de André - Marilda Reis, de 70 anos, foi a 16ª pessoa a morrer após ser infectada com o novo coronavírus em Mato Grosso do Sul, no dia 17 de maio. O genro dela, André Cardamone Júnior, 58 anos, foi o 13º óbito registrado. Ela faleceu por volta das 20h30 e o sepultamento foi na noite do mesmo dia, no Cemitério Campo Santo. Só uma pessoa pode comparecer a despedida.
Marilda era a dona da casa onde família se reunia para comemorar o que fosse. Mas o que costuma ser divertido, virou risco no feriado do dia 1º de Maio. Contra as orientações de evitar aglomeração, a família se encontrou e semanas depois a morte veio comprovar quanto o coronavírus é rápido em se proliferar e matar.
Fã – A covid-19 levou Creuza Maria Caetano dos Santos às 1h40 da última quarta-feira (20), aos 83 anos. Avó do cantor sertanejo João Gustavo, 26 anos, ele lamentou não ter tido tempo de se despedir.
Creuza estava em coma, totalmente isolada, por isso, não recebeu visitas nos seus últimos dias. Na quarta de manhã, o enterro foi acompanhado de longe pela família, que não sabe onde ela pode ter contraído a doença.
“Era minha fã número 1”, recorda o neto com saudades da mulher que foi uma das maiores incentivadoras de sua carreira. “Ela sempre me acompanhou e sempre me deu força”.
Mais vidas – Sobre as outras cinco pessoas que faleceram com covid-19 em Mato Grosso do Sul, em alguns casos, a família não quis falar com a reportagem, o que foi respeitado. Em outros, os parentes ainda não admitem a morte pela doença.
Duas idosas de 81 e 76 anos, respectivamente, morreram após serem infectadas em casa de repouso de Três Lagoas, a Leituga. Ninguém no local quis falar com a reportagem. Elas morreram nos dias 15 e 23 de abril.
Em Campo Grande, mulher de 63 anos que fazia tratamento de câncer de mama morreu em 13 de abril. Ela estava internada no Hospital da Unimed.
Moradores na mesma casa na Vila Carvalho, dois idosos de 71 e 95 anos, morreram nos dias 12 de abril e 6 de maio. A família questiona a causa da morte e não quer falar sobre os casos. Na residência, eram seis idosos morando juntos.
Hoje, a 18ª vítima ainda não teve o nome divulgado, mas já foi sepultada também com a mesma despedida rápida, traduzida como "protocolo" em tempos de pandemia.