Cansadas da perseguição “sem lei”, mulheres falam em “matar ou morrer”
Perseguição de ex-companheiros ou de desconhecidos não têm tipificação na legislação brasileira
É matar ou morrer quando se chega à beira da loucura e do desespero. Ato final extremo, por enquanto isso é apenas voz em mulheres que denunciam ameaças e perseguições de ex-companheiros, ou de desconhecidos, o “stalking”, sem encontrar salvação na lei.
“Eu tô achando que eu vou matar ele e me matar”, confirma empresária e contadora de 48 anos, com voz trêmula de choro. Madalena* relata ter vivido por 12 anos com o homem que hoje a persegue e o fim do relacionamento, em setembro de 2017, foi decisão dele, contou. Em desespero, ela pediu para voltar. Negativa. Em dezembro, alegou, quem pediu para voltar foi ele. Para ela, essa data marca o que chamou de “início do meu tormento”.
Perseguição – Madalena contou uma série de ações que levam mulheres mundo afora a perderem a sanidade, mas que encontram resistência e dificuldade de comprovarem a violência sofrida.
A perseguição que relatou envolve danos ao patrimônio da empresa onde está, todos os dias, em Campo Grande; furo de pneus do carro que dirige; perseguição no trânsito e por último, que para ela foi “gota d’água”: o ex-companheiro subiu no telhado da empresa e disparou com arma de fogo.
No caso da personagem, outro ponto de dificuldade é que a empresa onde trabalha fica ao lado de terreno que é propriedade dele. Dessa forma, o autor da perseguição tem acesso ao local.
Madalena morava com a mãe em casa no mesmo terreno onde funciona a empresa de contabilidade, mas mudou-se em 2019 para prédio com porteiro, por temer pela própria vida.
“Eu liguei pra minha advogada num domingo porque ele estava me perseguindo, e nesse dia foi quando eu fui a primeira vez na delegacia. Fui eu, minha mãe, minhas irmãs, fui com a minha advogada. Eu falei: eu tenho que ir na delegacia, a senhora pode me acompanhar na segunda? Por que eu não estou aguentando mais. Estava com ela na ligação. Eu saí aqui fora, aqui na frente, ele estava no telhado, ele deu tiro, atirou pra cima, aí a minha advogada falou: corre pra dentro que é tiro”, relatou.
Ao fim, com prejuízos financeiros, o pior estrago é na razão. Madalena contou ter perdido todas as esperanças de que o poder público a proteja. Ela denunciou o caso à Deam (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher), e conseguiu medida protetiva em dezembro de 2019, que obriga o autor a ficar 10 metros longe dela. Não é suficiente, argumenta.
Perseguição sem lei – Titular da Deam, a delegada Fernanda Felix explica que a dificuldade, em casos como o de Madalena, é enquadrar esse comportamento agressivo na legislação. No caso de Madalena, por exemplo, os episódios entram em crimes como “ameaça, dano, disparo de arma de fogo e injúria”. A medida protetiva de apenas 10 metros, explicou, ocorre porque autor e vítima dividem, praticamente, o mesmo local de trabalho.
A delegada enxerga na criação de uma nova lei, que tipifique o crime de stalking, palavra em inglês para perseguição, uma saída possível, especialmente pelo aumento de pena. É o que já ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. Ainda assim, conforme destaca, é importante que as vítimas não deixem de denunciar e, especialmente, que comuniquem à polícia quando agressores violam medidas protetivas.
Advogada de Madalena, Vanda Aparecida de Paula acompanha o caso e contou que a cliente é constantemente ameaçada. Na quinta-feira (12), informou a advogada, Madalena contratou um segurança privado para ficar na sede da empresa.
“Depois que ela mudou, começou a perseguição patrimonial. Se ela abrir a boca, quando ela reclama com ele, ele fala: vou te matar”, afirmou.
Uma lei para a perseguição – Um dos projetos que tramitam no Congresso para tipificar essa forma de violência é do deputado federal Fábio Trad (PSD-MS). A espera de votação, requerimento de urgência fez com que o texto pulasse etapas na Câmara – a de comissões -, quem ameaça a aprovação é, agora, o novo coronavírus, Sars-Cov-2 e a consequente doença, Covid-19.
A expectativa do deputado era que o projeto passasse por votação na terça-feira (17), mas o Congresso já estuda suspender as atividades pelos riscos do contágio.
Apresentado em fevereiro de 2019, o projeto 1020/2019 inclui o crime assédio obsessivo ou insidioso (stalking) no código penal. O texto define como assédio obsessivo ou insidioso “assediar alguém, de forma reiterada, invadindo, limitando ou perturbando sua esfera de liberdade ou sua privacidade, de modo a infundir medo de morte, de lesão física ou a causar sofrimento emocional substancial”.
A pena proposta para o crime é reclusão de dois a quatro anos e multa, mas também apresenta qualificador se o autor do fato foi ou é parceiro íntimo da vítima. Quando isso ocorre, o projeto propõe que o tempo mínimo de reclusão aumente de dois para três anos e o máximo, de quatro anos, pula para cinco.
“É uma conduta extremamente danosa, reveladora de alta periculosidade, e no Brasil não há lei. Nos Estados Unidos quase todos os estados criminalizam. Os autores começam perseguindo, ameaçando, constrangendo, pra depois cometerem o ato final. Estamos nos antecipando”, comentou o deputado.
O Campo Grande News procurou advogada que representa o autor dos crimes atribuídos, Ketlyn Kipfer Coelho, que enviou nota sobre as acusações. Segundo a nota, as "informações relatadas pela vítima são inverídicas". "Ressalta-se, ainda, que apesar do prestígio que a Lei Maria da Penha goza, infelizmente a mesma é utilizada de maneira irresponsável como tentativa única de prejudicar o suposto “ofensor”.
*O nome foi mudado para preservar a identidade da vítima.
**matéria alterada às 8h27 do dia 15 de março para acréscimo de informações.