Da bolha de amor à violência: delegada viu Vanessa presa em um ciclo
Além do assassinato da jornalista, Caio também foi denunciado por violência psicológica e cárcere privado

RESUMO
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Vanessa Ricarte, jornalista, foi assassinada a facadas pelo ex-noivo Caio Cesar Nascimento Pereira em 12 de fevereiro, após tentar romper um ciclo de violência psicológica e cárcere privado. O crime foi premeditado, ocorrendo quando Vanessa, acompanhada de um amigo, voltou à casa para pedir que Caio saísse. O relátorio policial descreve um ciclo completo de violência, com fases de amor e agressão, que a manteve em dependência emocional. Caio será julgado por feminicídio, cárcere privado, violência psicológica e tentativa de homicídio contra o amigo de Vanessa. O caso gerou comoção nacional e cobranças por melhores políticas de prevenção à violência doméstica.
A brutalidade com que a jornalista Vanessa Ricarte foi assassinada pelo ex-noivo, Caio Cesar Nascimento Pereira, em 12 de fevereiro, foi um gesto premeditado diante da tentativa contundente dela de sair de um ciclo de violência psicológica que a manteve presa por um bom tempo, sustentando o relacionamento. A análise consta no relatório final do caso, enviado à Justiça e que já culminou na denúncia apresentada pelo Ministério Público contra o músico pelo homicídio, cárcere privado e violência psicológica contra ela e a tentativa de homicídio contra o amigo que ajudou Vanessa, quando ela pediu para o artista sair de sua casa.
A descrição da violência já foi relevada em reportagens ao longo dos dias que se seguiram ao crime, com a decisão dela de levar o caso à polícia, após descobrir que ele a expôs e difamou em rede social, e romper o relacionamento, que já se aproximava do casamento. Familiares e amigos que acompanharam de perto haviam contado os últimos dias de Vanessa.
Com a reunião de tantos relatos, o recolhimento de provas na casa, a polícia conseguiu definir o que a delegada que assina o relatório, Analu Lacerda Ferraz, descreve como um “ciclo completo de violência”, em um relacionamento abusivo, produzindo situações “bipolares” – de uma bolha de amor, com cenas de lua-de-mel, à violência psicológica que a manteve presa, em condição de dependência do agressor, chegando a um cárcere privado nos últimos dias e ao homicídio, quando ficou claro para Caio que não tinha mais como permanecer na casa.
A condição de dependência psicológica é apontada em vários momentos do documento. Mesmo após a divulgação de vídeo e difamação nas redes, houve esforço para apoiar Vanessa a se sentir segura e adotar medidas para encerrar o relacionamento. Ela ainda queria uma nova conversa com o agressor para convencê-lo a sair de casa no diálogo, não acreditando que sofreria algo e se culpou por não ter reconhecido que ele era agressivo e não uma pessoa buscando recomeço, como sustentou para ela.
Descrevendo a relação, o relatório menciona várias situações sobre a dependência emocional e os abusos que ela suportou: o uso de seus recursos para sustentar o vício de drogas, numa violência patrimonial, os atos que foram minando “a autoestima e a determinação como mulher empoderada que todos narram que ela era”.
Vanessa era uma pessoa muito ativa, alegre e trabalhava como assessora de imprensa no Ministério Público do Trabalho. Ela “anulou-se para aceitar a submissão do ciclo de violência que Caio impôs a ela”, diz a delegada no relatório.
Sobre o ciclo completo de violência, Analu descreve aquele que envolve explosões, cenas de remorso e culpa do agressor, momentos românticos, promessas e negação da conduta, ameaças e ações para deixar a vítima isolada das outras pessoas, um estado constante de tensão e a convivência permanente com o medo, o controle e o exercício da autoridade pelo agressor.
E segue descrevendo cenas que comprovam a dinâmica que a manteve presa, em “grave violência psicológica”, a ponto de retornar à casa mesmo após ter sido mantida em cárcere privado por cinco dias, acreditando que poderia dialogar com o agressor. Ela não fez o relato sobre o cárcere na unidade policial, consta no relatório final, dispensando a oferta do abrigo. Enquanto esperava a expedição de medida protetiva, acabou indo para casa pedir para Caio sair.
“Vanessa estava com vergonha e não acredita que estava tão exposta publicamente”, cita a delegada, analisando a falta de previsão da gravidade, embora Vanessa fosse uma mulher que falasse sobre o tema a outas.
Ela não acreditava “que o homem que sempre se apresentou como um príncipe teria coragem de atacá-la.” “Vanessa não procurou a morte”, completa, apontando que o que ocorreu foi que ela “foi surpreendida pela covardia, frieza e ódio de um homem que viu uma mulher (mesmo com medo) romper o ciclo da violência”.
Analu menciona que mais cedo, Vanessa esteve na casa, onde Caio permanecia, e deixou o imóvel sem problemas. O ataque ocorreu à noite, quando ela voltou, acompanhada do amigo, para pedir que ele saísse.
A delegada considera que ele queria manter a situação de controle e violência sobre Vanessa.
Ela não pôde romper o ciclo. Ela não pôde sair. Ele a impediu. Ele a calou”, descreveu a delegada Analu Lacerda Ferraz, da Deam.
Segundo a delegada, a violência psicológica chega silenciosa, vestida de cuidado, “em doses homeopáticas, mas quando a vítima percebe, está destruída por dentro e essa destruição ninguém vê porque a vítima se fecha e não consegue entender ou compreender o seu papel de vítima”.
É uma descrição bastante conhecida por quem conhece alguma mulher que conseguiu romper o ciclo e relata o que viveu. Sobre os altos e baixos, a delegada aponta que a mulher vive “situações mais românticas” e, na sequência, “um verdadeiro inferno” em sua vida. Tudo começa com cara de um grande amor, mas no dia a dia é adrenalina o tempo todo, aponta.
Em relação ao comportamento de Caio, o relatório mostra ainda que ele praticou uma enxurrada de manipulações. Se apresentou como um “príncipe encantado” e prestativo a ponto de não deixá-la mais dirigir: um controle revestido de cuidado. “Ele colocou sua vítima numa bolha de amor e ela começou a se afastar de tudo e de todos”, explica.
O resultado foi que Vanessa se isolou. Os amigos disseram que suspeitaram que ele até mesmo ficava com o celular dela e respondia às mensagens que chegavam. Quando a história começou a desandar e Vanessa passou a questionar Caio, veio a humilhação para desarmá-la e deixá-la fragilizada, expondo vídeo e ofendendo-a nas redes sociais. Foi essa exposição o fato determinante para ela reagir, o que fez ele escalar na brutalidade.
O crime e o julgamento – Caio será levado a júri popular pelo feminicídio de Vanessa e pode pegar de 20 a 40 anos de prisão, com aumento de até um terço, porque agiu de forma a enganá-la e impedir que se defendesse, ao sugerir que queria conversar e, então, golpeá-la com facadas na região do coração. Por cárcere privado, ele pode ser condenado de 2 a 5 anos de prisão e também pela violência psicológica, com pena entre 6 meses e 2 anos. Há ainda a denúncia contra ele pela tentativa de matar o amigo de Vanessa. O caso tramita em segredo de justiça.
Quando os dois foram à casa, para ela pedir que Caio saísse, ele inicialmente pareceu tranquilo e na sequência iniciou o ataque. O jornalista, amigo de Vanessa, conseguiu levá-la à cozinha, bloqueou uma porta e ficou segurando a outra, porque o músico o ameaçava e forçava a entrada. Quando a Polícia Militar chegou, ele estava no segundo andar do imóvel ainda com a faca e precisou ser contido e preso.
Na delegacia, permaneceu em silêncio. Sua defesa tenta apresentar a dependência por drogas como fator que levou ao assassinato.
Reflexão para todos – A morte da jornalista gerou uma onda de comoção nacional e cobranças ao poder público, por políticas de prevenção à violência doméstica - o Estado já teve 6 mulheres mortas esse ano – e aperfeiçoamento da rede de proteção. A própria Polícia Civil e Ministério Público reavaliam os atendimentos, parlamentares se apressaram em aprovar leis de proteção e o governador Eduardo Riedel afirmou que poder público e a sociedade falharam no caso.
Sobre o que pode mudar, a delegada faz até uma pregação. “A crueldade cometida contra Vanessa terá reflexos para todas as demais que depois dela virão. Vanessa se foi, mas sua voz ecoará na luta pelo direito das mulheres vítimas de violência doméstica”, citando que os efeitos das medidas após o crime não ficarão restritas ao Estado.
E em relação às várias camadas do problema que é a violência contra a mulher nas relações afetivas, ela aponta no relatório que a violência psicológica chega silenciosa, embalada como cuidado, “em doses homeopáticas, mas quando a vítima percebe, está destruída por dentro e essa destruição ninguém vê porque a vítima se fecha e não consegue entender ou compreender o seu papel de vítima.”
E ainda se extrai um argumento potente da delegada para pessoas que não conseguem entender a complexidade da situação em que se encontram mulheres aprisionadas em uma relação abusiva. “A resposta é só uma: VANESSA ESTAVA IMERSA EM UM CICLO DE VIOLÊNCIA com fases alternadas entre tensão, agressão e lua-de-mel, quando o agressor se empenha em agradar, faz juras de amor... disse que iria mudar, prometeu que foi a última vez. Vanessa estava tão debilitada emocionalmente que acreditava em Caio e não conseguiu sair desse ciclo”.
A reconstrução dos fatos apontou que ele tentou isso até o último momento, com os relatos demonstrando que no último dia, enquanto Vanessa buscava forças para tomar providências práticas e virar a página, ele tentou o dia todo, por contato telefônico, convencê-la de que iria mudar e buscava ajuda.
Não conseguiu, e transferiu a fúria contra a vida da jornalista.