Investigado por venda de sentença, magistrado mal lia decisões que dava, diz MPF
Assessor de Divoncir Maran tinha token para assinar decisões redigidas por outros servidores, constatou PF
Investigado por supostamente vender habeas corpus ao narcotraficante Gerson Palermo, o “Pigmeu” ou “Italiano” do PCC (Primeiro Comando da Capital ), o desembargador Divoncir Schreiner Maran sequer lia parte das sentenças proferidas por ele. A constatação da PF (Polícia Federal) foi destacada pelo subprocurador-geral da República, José Adonis Callou de Araújo Sá, em parecer que pede a condenação do magistrado.
Para Araújo Sá, Schreiner Maran era negligente. “A conduta do magistrado revelou, ainda, manifesta negligência em seu atuar”, destaca no documento ao qual o Campo Grande News teve acesso.
O subprocurador rememora que durante o plantão do feriado de Tiradentes, em abril de 2020, 11 processos chegaram ao “gabinete” de Divoncir, mas só o HC impetrado em favor de Palermo “mereceu a atenção do magistrado, de modo a repassar a orientação sobre o sentido a ser adotado na minuta apenas nesse caso, inclusive citando a jurisprudência transcrita pelo advogado do paciente na inicial, antes mesmo da distribuição para o gabinete, a demonstrar a ciência que o requerido tinha desse documento previamente ao seu ingresso no sistema processual do TJMS [Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul]”.
Ele ainda traz diálogos interceptados entre Gabriela Soares Moraes, servidora que também foi alvo da Operação Tiradentes, e outro assessor* do desembargador, apelidado de “Bob”, demonstrando que os processos sequer passavam pelas mãos de Maran. Em vários momentos, a funcionária, responsável por redigir as decisões judiciais durante o plantão, explica o conteúdo das minutas e pede que o colega, que exerce autoridade sobre os outros assessores, as assine.
Em depoimento à PF, o servidor confirmou que, corriqueiramente, tinha o token (dispositivo com senhas) do magistrado para assinar digitalmente as decisões.
No caso do HC que libertou o narcotraficante, segundo Araújo Sá, “comprovou-se que a execução da assinatura da decisão foi feita pelo servidor que conhecia a senha do requerido e utilizava seu token, caracterizando-se uma indevida delegação de ato personalíssimo do julgador, suficiente a abalar a segurança jurídica necessária à prestação jurisdicional”. “A aprovação da minuta pelo magistrado não tornou regular a prática adotada e tampouco afastou a manifesta negligência de sua conduta, correspondente a uma inaceitável terceirização da jurisdição”, completa.
Gambiarra – A conversa entre Gabriela e Bob sobre o habeas corpus concedido a Palermo também demonstra que Divoncir não se debruçou sobre o caso para tomar decisão. A servidora alertou ao “assessor-chefe” da “gambiarra” que teve de fazer para justificar a liberação do “chefão do PCC” para a prisão domiciliar.
Gabriela avisou que haveria supressão de instância, no "juridiquês", para dar decisão favorável a Palermo. Avisou ainda que a defesa do narcotraficante alegava doenças para pedir a prisão domiciliar do cliente sem anexar laudos médicos.
Intromissão – Outro ponto trazido pelo subprocurador no parecer é a constatação da investigação que a esposa de Divoncir Maran, Viviane Alves Gomes de Paula, também conversava com “Bob” sobre os processos que passavam pelo marido, embora ela seja servidora do TRE (Tribunal Regional Eleitoral).
“Dentre as mensagens de texto analisadas, em 31/3/2021 consta o diálogo entre Viviane Alves Gomes de Paula e ‘Bob’, no qual infere-se a ingerência da primeira em processo que seria decidido pelo magistrado, cuja minuta seria elaborada pelo segundo, a quem ela transmite determinações, supostamente a pedido do companheiro”, exemplifica.
Araújo Sá observa que a naturalidade com que os interlocutores falam dos processos demonstra como tais tratativas eram corriqueiras. “Ou seja, era comum que a companheira do magistrado dirigisse determinações sobre processos judiciais específicos ao assessor do magistrado, que a ela se reportava dando retorno sobre as minutas e notícias sobre julgamentos. Outro diálogo, ocorrido em 16/4/2020, comprova o afirmado”. Veja:
Suspeita de venda – No CNJ (Conselho Nacional de Justiça), Divoncir foi investigado pela decisão que concedeu prisão domiciliar ao narcotraficante Gerson Palermo. Com pena de 126 anos de prisão, o condenado acabou fugindo e nunca foi recapturado.
O desembargador também virou alvo da Polícia Federal, que deflagrou a Operação Tiradentes – em referência ao feriado em que o magistrado deu a decisão –, em fevereiro deste ano, em busca de provas do “comércio” de decisões judiciais.
Em 21 de abril de 2020, ainda no início da pandemia do coronavírus, Palermo foi enquadrado no grupo de risco para a covid e obteve prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico. No habeas corpus, a defesa alegou que Palermo tinha mais de 60 anos, sofria de diabetes, hipertensão e por isso corria risco de contrair o vírus no cárcere.
No dia seguinte, 22 de abril, o desembargador Jonas Hass Silva Júnior, relator do processo, revogou a liminar e restabeleceu a prisão, mas 8 horas após o benefício do regime domiciliar, o condenado já havia rompido a tornozeleira eletrônica e desaparecido.
Palermo é piloto de avião, acumula passagens pela polícia desde 1991 e é chefe do tráfico de cocaína. O crime mais ousado foi no ano 2000, quando sequestrou um Boeing da Vasp.
Outro lado – O advogado André Borges, que representa o desembargador, garante que conseguirá provar a inocência do cliente. “Divoncir está tranquilo, sabendo que os fatos serão esclarecidos. Inexistiu qualquer crime, como sempre repetido”.
O responsável pela defesa do magistrado diz ainda que “a investigação [da PF] até agora foi confusa e recheada de suposições”. “Mas há tempo para que a verdade apareça”, completou, em conversa com o Campo Grande News no dia 7 deste mês.
No dia 3 de abril, abordada pela reportagem na porta da Justiça Federal, a defesa da servidora Gabriela Soares Moraes aproveitou para afirmar que, no depoimento, ela esclareceu que apenas cumpria ordens quando redigiu a peça processual, depois assinada pelo desembargador. “Era apenas uma funcionária e cumpriu ordens”, afirmou o advogado Renê Siufi.
(*) O nome do assessor foi preservado porque ele não foi alvo da operação da PF.
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