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Cidades

Metade das famílias recusa doação de órgãos em MS

A negativa ocorre mesmo quando o paciente declarou em vida o desejo de ser um doador

Por Jéssica Fernandes | 02/05/2024 14:33
Equipe da Santa Casa de Campo Grande durante cirurgia de transplante em 2020. (Foto: Assessoria)
Equipe da Santa Casa de Campo Grande durante cirurgia de transplante em 2020. (Foto: Assessoria)

Em 2024, 559 pessoas aguardam na fila por um transplante em Mato Grosso do Sul, uma espera que gera ainda mais ansiedade quando o paciente se depara com uma estatística difícil de combater. Em Mato Grosso do Sul, no ano passado, de 106 potenciais doadores, em 59 casos as famílias não autorizaram a retirada dos órgãos. Isso significa que a cada duas doações, pelo menos uma não é efetivada por rejeição dos parentes que se recusam a assinar a documentação.

Em cada vida perdida, são vários os órgãos que pode ser retirados para salvar outras, mas essa ideia não convence todo mundo. A negativa também ocorre mesmo a pessoa tendo declarado em vida o desejo de ser um doador. Hoje, existe a possibilidade de registrar de graça esse desejo em cartório, mas sem poder legal e, no fim das contas, quem decide é a família.

A CET/ MS (Central Estadual de Transplantes de Mato Grosso do Sul) é responsável por coordenar o processo de notificação, captação e distribuição de órgãos. Para conseguir salvar a vida de alguém, o trabalho também envolve conscientização, buscas diárias de possíveis doadores no Imol (Instituto de Medicina e Odontologia Legal), no SVO (Serviço de Verificação de Óbito), UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e CRSs (Centros Regionais de Saúde).

À frente do CET/MS, Claire Carmem Miozzo fala que a recusa dos familiares é algo que ocorre em todos os estados, mas no caso de Mato Grosso do Sul, o cenário é pior que na média nacional de 42% de recusas, por diferentes porquês.

"São vários motivos que as famílias alegam: desconhece a vontade do doador, demora na entrega do corpo, querem o corpo íntegro, familiar não foi atendido adequadamente no hospital, familiares não aceitam a morte encefálica ou nunca ouviram falar em doação de órgãos. Enfim, são muitos motivos, mas o principal é que desconhecem a vontade de ser doador de órgãos da pessoa que morreu", esclarece.

Coordenadora do CET/ MS, Claire Carmem Miozzo fala sobre doação de órgão em MS. (Foto: Divulgação)
Coordenadora do CET/ MS, Claire Carmem Miozzo fala sobre doação de órgão em MS. (Foto: Divulgação)

Apesar do número alto de negativas, a coordenadora explica que há formas de transformar o não em um 'sim'. “Quando as famílias são bem acolhidas e entrevistadas adequadamente, a probabilidade de dizer ‘sim’ à doação de órgãos é maior”, declara.

Como o processo de doação de órgãos é feito em hospitais, equipes são treinadas para fazer o acolhimento e entrevista familiar. Claire Carmem enfatiza que, no final, a palavra do parente é a última que vale.  "Se a família não autorizar a doação, agradecemos e explicamos quais os próximos passos para a entrega do corpo do ente querido", diz.

Além do papel do CET/MS para conseguir reverter a negativa, Claire destaca a importância de as pessoas falarem abertamente com a família sobre a vontade de serem um doador de órgãos. “É preciso que as pessoas conversem com seus familiares e deixem claro, em vida, o desejo de ser um doador de órgãos e tecidos. Quando a família sabe a verdade da pessoa, a chance de dizer sim à doação é maior”, afirma.

No Brasil, a doação de órgãos é feita por dois tipos de doadores: o vivo e o falecido. O primeiro contempla aqueles que têm o desejo de doar e podem realizar o procedimento, desde que o mesmo não prejudique a própria saúde. O segundo é o doador falecido que, mesmo tendo autorizado em vida, só terá os órgãos doados diante da autorização familiar. A liberação pode ser concedida por um cônjuge, pai, mãe, irmão ou avós.

Tabela mostra o número de cirurgias feitas no Estado neste ano. (Arte: Bárbara Campiteli)
Tabela mostra o número de cirurgias feitas no Estado neste ano. (Arte: Bárbara Campiteli)

Fila do transplante em MS - Conforme os dados da SES (Secretaria Estadual de Saúde), dos 559 que estão na fila, 376 precisam do transplante de córneas e 183 do transplante de rim. Apesar de expressivo, o número não mostra na totalidade quantos sul-mato-grossenses necessitam de um ou mais órgãos para continuar vivendo. Isso porque, além dos citados acima, em Mato Grosso do Sul são realizados somente a transplantação de medula óssea e tecido músculo esquelético (ossos).

Neste ano, o Estado já realizou 112 transplantes, sendo o de médula o que lidera a lista com 92 procedimentos efetuados. Em seguida, vem rim (13), tecido músculo esquelético (4) e médula (3).

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Em breve, o Estado poderá realizar transplante de fígado. O Ministério da Saúde e o Sistema Nacional de Transplante autorizaram o Hospital do Pênfigo unidade matriz a efetuar o procedimento. Mesmo com a autorização, a coordenadora da CET/MS explica que falta a Secretaria Municipal de Saúde contratualizar o serviço junto ao hospital para que esse tipo de transplante seja feito.

Assim que a medida for tomada, a CET/MS irá fazer o encaminhamento dos pacientes que precisam da doação. “A equipe vai avaliar o paciente, solicitar exames e se realmente tiver indicação para transplante de fígado, ele será inserido na fila e aguardar até que surja um órgão compatível. Quando tivermos uma doação, vamos ofertar para a equipe transplantadora que irá avaliar o órgão e a situação do receptor para que a gente possa realizar o transplante com segurança”, esclarece.

‘Doação é amor’ -  A lista para transplantes é única sem dar privilégios a pacientes da rede privada ou do SUS (Sistema Único de Saúde). Uma vez que o paciente entra, só resta aguardar e essa espera pode durar mais tempo do que a pessoa doente tem para doar. Em Campo Grande, três homens sabem por experiência própria que a decisão de ser um doador salva vidas.

Carlos Henrique é um dos campo-grandenses que defendem a doação de órgãos. (Foto: Arquivo pessoal)
Carlos Henrique é um dos campo-grandenses que defendem a doação de órgãos. (Foto: Arquivo pessoal)

Carlos Henrique Brittes Taveira, de 57 anos, encontrou no próprio âmbito familiar um doador. A irmã foi quem o salvou em 2015 quando precisava de um rim. Há nove anos, Carlos viu tudo acontecer rapidamente, desde o diagnóstico até a cirurgia passaram poucos meses.

Em março daquele ano, ele sentiu dores musculares após uma partida de futebol e não demorou para que soubesse o motivo. “Eu fui ao médico e foi constatado que eu estava com insuficiência renal. O médico falou que iria me preparar para uma hemodiálise e eu entrei numa dieta zero sal, proteína, potássio”, diz.

Passado um mês, a hemodiálise foi suspensa e até junho Carlos focou numa alimentação saudável. Com as taxas reduzidas, como a de hemácia, ele foi encaminhado para a fila do transplante. Nessa época, a irmã passou por uma série de exames para testar a compatibilidade, que atestou 100%. Com o ‘sinal verde’, ela precisou perder nove quilos para a cirurgia, que foi realizada em dezembro do mesmo ano.

O transplante foi um sucesso e, segundo Carlos, isso fez toda a diferença. “Ela salvou minha vida, porque se ela não tivesse doado eu automaticamente ia para uma hemodiálise. Eu estava segurando na dieta, achei que iria voltar o rim, mas não. Eu fui abençoado”, destaca.

Geison Rezende Salgado, de 58 anos, tem uma história à parte como receptor. O empresário recebeu, em anos diferentes, a doação de córneas e rim. A primeira experiência foi em 1986 quando recebeu o transplante de córnea do lado direito devido ao diagnóstico de ceratocone.

A doença que é considerada rara fez com que Geison perdesse 60% da visão. Aos 20 anos, ele conta que entrou na sala de cirurgia sem saber se o procedimento daria certo, pois o transplante ainda era novidade na Capital.

“A grande preocupação era sobre o resultado do transplante, pois existe o risco de perder a visão por inflamação. Se não me engano, o meu foi o segundo transplante de córnea na cidade”, recorda.

O transplante foi um sucesso, mas em 2001 o empresário voltou a enfrentar a fila. Dessa vez, ele precisava do mesmo órgão, mas para o lado esquerdo. Assim como na primeira vez, tudo ocorreu bem e até hoje Geison segue sendo acompanhado pelo mesmo médico responsável por ambas cirurgias.

A história poderia terminar assim, porém em 2014 Geison recebeu duas alternativas: diálise ou transplante de rim. Naquele ano, o campo-grandense foi a São Paulo, para o Hospital das Clínicas, fazer o tratamento. A irmã foi quem doou o rim, que acabou sendo recusado pelo organismo do empresário.

“Deu tudo errado, tive hemorragia, deu trombose. Eu não morri por Deus. Depois, fiz dois anos de diálise e em 2016 me chamaram no Hospital do Rim em São Paulo”, comenta.

Dessa vez, Geison recebeu o rim  de um doador falecido. “O transplante foi perfeito, está indo para oito anos e faço acompanhamento aqui em Campo Grande e em São Paulo”, diz. Salvo mais de uma vez com a doação de órgãos, o empresário espera um dia fazer o mesmo por outra pessoa. “Eu sou um doador. Eu costumo falar que deve ter alguma coisa que vai servir pra alguém. Eu espero que sirva e acho que isso (doação) é muito importante”, afirma.

Carlão, em palestras sobre a importância de doação de medula óssea.
Carlão, em palestras sobre a importância de doação de medula óssea.

Em Campo Grande, Carlos Alberto Rezende, o ‘Professor Carlão’, é figura conhecida em relação à conscientização da doação de sangue e órgãos. Em 2015, ele foi diagnosticado com aplasia medular severa e no ano seguinte recebeu o transplante de medula óssea. Desde então, o professor de Biologia e Química chama atenção para essa causa em Mato Grosso do Sul.

Idealizador do Instituto Sangue Bom, ele e outros voluntários atuam na área de saúde, educação, esporte e cultura tendo como base a importância de ser um doador de órgãos, sangue e medula óssea. O professor enfatiza que é essencial que aqueles que sintam vontade de doar órgãos converse com os familiares sobre o tema, pois independente desse desejo é o responsável que irá autorizar ou não o procedimento.

“É muito importante que essa conscientização chegue às famílias. O Instituto Sangue Bom, com a minha palestra, ‘Histórias de um Transplantado’, leva incansavelmente essa informação. Dessa forma não apenas conscientizando, mas também sensibilizando as pessoas da importância que esse pequeno gesto de amor tem na vida do próximo”, explica.

Apesar da dor da perda de alguém querido, o professor fala que a decisão não deixa de ser um gesto de amor com o próximo. “O mais importante da adoção é que a gente faz o bem sem ver a quem e sem esperar resposta, pois viver é um gesto de amor. Portanto, é muito importante a conscientização”, conclui.

Profissionais no transporte em 2023 de órgãos de garotinha de 3 anos, que morreu afogada em Dourados.
Profissionais no transporte em 2023 de órgãos de garotinha de 3 anos, que morreu afogada em Dourados.

Em Mato Grosso do Sul, os transplantes de órgão são realizadas nas seguintes instituições:

  • Transplante de rim: Santa Casa (SUS) e Hospital da Unimed (particular e convênio);

  • Transplante de medula óssea autólogo: Hospital Cassems (particular e convênio);

  • Transplante de tecido músculo esquelético (ossos): Hospital da Unimed (convênio e particular);

  • Transplante de córnea: Santa Casa (SUS), São Julião (SUS) e várias clínicas particulares realizam o transplante de córnea.

Critérios - A lista de espera por um órgão funciona baseada em critérios técnicos, em que tipagem sanguínea, compatibilidade de peso e altura, compatibilidade genética e critérios de gravidade distintos para cada órgão determinam a ordem de pacientes a serem transplantados.

Quando os critérios técnicos são semelhantes, a ordem cronológica de cadastro, ou seja, a ordem de chegada, funciona como critério de desempate. Pacientes em estado crítico são atendidos com prioridade, em razão de sua condição clínica. Quando um paciente precisa de transplante que não é realizado em Mato Grosso do Sul, será encaminhado para outro estado com equipe e estabelecimento autorizados para a realização do transplante.

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