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Capivara Criminal

"Tchola", 18 anos: condenação, erro judiciário e surto na prisão

A história contada pela coluna hoje é de um jovem, mas poderia ser de milhares tragados pela criminalidade

Marta Ferreira (*) | 18/10/2020 07:45
As mãos são de "Tchola", que aos 18 anos já tem uma condenação e já foi vítima de erro do judiciário. (Foto: Paulo Francis)
As mãos são de "Tchola", que aos 18 anos já tem uma condenação e já foi vítima de erro do judiciário. (Foto: Paulo Francis)


De cada 10 presos cumprindo pena em Mato Grosso do Sul, 4  não têm nem 30 anos. São quase 8 mil nesta faixa etária, de um público carcerário de 19,6 mil pessoas. Desse universo, mais de 40% sequer chegaram aos 24 anos. Boa parte, em número não precisado pelas estatísticas oficiais, é "cliente" do sistema judiciário desde a adolescência ou até antes disso. São reincidentes contumazes, jovens cuja vida foi tragada pelo lado à margem da lei.

São meninos por assim dizer. A trajetória deles praticamente se resume a apreensões seguidas quando menores de idade, liberações e, na fase adulta, prisões que começam mal chegam à maioridade. Os crimes vão se agravando.

O personagem deste domingo da "Capivara Criminal" ilustra esse círculo vicioso. Contar a história dele é contar a de muitos dos detentos que, em plena juventude, estão no cárcere, ou tentando fugir dele.

A coluna vai chamá-lo pelo apelido: "Tchola". Aos 18 anos, completados em fevereiro, ele já acumula em 2020 uma condenação e um erro judiciário, responsável por ficar na cadeia quando já devia ter sido liberado.

Nesse intervalo, de 20 dias, teve um surto psicótico na prisão, foi transferido para unidade onde ficam os criminosos mais perigosos do sistema estadual e, em razão da manifestação de doença mental, transformou-se em paciente psiquiátrico. Agora, toma remédios fortes todos os dias, conforme a defesa.

Crime, sentença e erro judicial - No dia 11 de de fevereiro, "Tchola" e um comparsa foram flagrados por câmeras de vídeo quando invadiram uma casa, forçando o portão de elevação. As imagens mostram a dupla fugindo em veículo furtado por uma terceira pessoa.

Preso dias depois, na casa de um quarto jovem, esse também com  passagens policiais,  o rapaz confessou o crime, mas se absteve de dar detalhamento na Derf (Delegacia Especializada de Furtos e Roubos), onde foi feita a investigação por furto qualificado, por causa do rompimento de obstáculo.

Relatório médico dos sintomas apresentados pelo preso e da medicações administradas. (Foto: Paulo Francis)
Relatório médico dos sintomas apresentados pelo preso e da medicações administradas. (Foto: Paulo Francis)

Cumpriu prisão preventiva de março até 25 de setembro, dia do julgamento na 1ª Vara Criminal Residual de Campo Grande. Para agilizar o processo, foi tudo feito num dia só, de interrogatório à sentença. O magistrado Francisco Vieira de Andrade Neto decidiu que "Tchola" era culpado por furto simples.

Entendeu não ter sido feita perícia essencial para comprovar a acusação de crime qualificado, mais grave e com pena maior, como havia afirmado a advogada do réu, Michelli Francisco,  nas alegações finais.

Como a condenação foi de pouco mais de 2 anos, a determinação na sentença foi de soltar o réu, para aguardar em liberdade os recursos possíveis, considerando estar ainda em primeiro grau o processo. Normalmente, o alvará de soltura leva pouco tempo a ser liberado.

Não aconteceu isso dessa vez. Houve um erro, admitido nos autos.

Apesar da sentença de fls. 354/361 ser do dia 25/09/2020 e haver nela determinação para emissão de alvará de soltura, o processo não havia sido movimentado pelo servidor/estagiário responsável, até esta data, para a fila do cartório, impossibilitando, assim, que fosse dado cumprimento ao determinado", está descrito no dia 13 de outubro pela chefia de cartório.

Só no dia seguinte, 14 de outubro, a soltura foi cumprida. Antes disso, em 2 de outubro, houve o surto e "Tchola" foi transferido de cela no Ptran para a ala psiquiátrica do EPJFC (Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho), a popular Máxima, na saída para Três Lagoas.

Versões - Em casa, no Jardim Colibri, na região Sul de Campo Grande, "Tchola" conversou com a "Capivara Criminal". Na sua descrição, ele lembra sem exatidão do episódio de surto no Ptran (Presídio de Trânsito) onde ficou de março a 2 de outubro.

Passou dois, três dias e nada. Fiquei ‘voado’, me deram remédio para conseguir dormir, antes não conseguia. Tive pesadelos”, afirma sobre a expectativa de sair e o descontrole emocional.

"Dia 25 de setembro ele estava lúcido, mas tudo aconteceu de forma extrema e nada foi comunicado”, completa a advogada Michelli Francisco.

Ela afirma que, diante da sentença, não era nem para o cliente ficar preso, já que a pena foi convertida em medidas restritivas de direito, como pagamento de um salário mínimo e serviço comunitário.

Alega só ter ficado sabendo da transferência e do que aconteceu com o representado por meio de outro cliente, que também estava no Ptran e foi solto. “Ele que comunicou".

“Foi uma sucessão de erros. A ida dele para a Máxima foi errada, ninguém foi avisado, juízo, família e nem defesa”.

“Mesmo que não houvesse a substituição da pena, a sentença era em regime aberto, não teria porque ele ir para lá, onde estão pessoas de alta periculosidade”, diz.

"Tchola" fala até em ter sofrido agressões.

O relatório médico sobre o episódio encaminhado à Justiça confirma que o preso apresentava fala desconexa e pensamento desorganizado.

A coluna indagou o rapaz sobre uso de entorpecentes, a partir da informação de especialistas da área de que os sintomas apresentados podem ser derivados tanto da falta quanto do abuso de drogas. Ele disse ter sido obrigado no presídio a fazer uso de cocaína.

A Agepen (Agência de Administração do Sistema Penitenciário) também foi procurada. A informação prestada é de que a transferência do preso de 18 anos do Ptran para a Máxima foi necessária, em razão do descontrole emocional apresentado.

Avançou contra os agentes, precisando ser contido, mas não houve agressão e em nenhum momento o interno relatou qualquer agressão por parte de outros internos ou mesmo da equipe de segurança", diz a nota.

Foi aberto procedimento interno para averiguar os fatos.

A situação de quem cria - Depois de sair da prisão, "Tchola" foi para a casa da avó. Com ela, conforme apurado, sempre passou mais tempo. Não concluiu nem o ensino médio, mas, segundo ela, era um "menino saudável".

"Ele nunca teve nada, depois que foi pra lá que ficou assim". Os exames feitos quando foi preso no Imol (Instituto de Medicina e Odontologia Legal) atestam não haver lesões ou doença aparente, assim como o questionário feito durante a audiência de custódia.

Os relatos da equipe da Derf, responsável pela investigação na qual o rapaz foi condenado, indicam ter havido até mudança de bairro pela família em meio às buscas.

Para os policiais, embora seja réu primário nesse processo, "Tchola" tem idade "tenra" mas já está imerso no mundo do crime. Conforme descrito, ele saiu da Unei (Unidade Educacional de Internação) em dezembro de 2019, por fatos ocorridos quando tinha entre 15 e 16 anos, e menos de três meses depois, havia sido preso.

Não recupera ? - Essa informação devolve o texto para a inflexão sobre a qual ele começou: jovens como "Tchola", iniciados no crime ainda na adolescência, estão "perdidos" para a bandidagem?

Estudiosa da questão, a advogada e jornalista Ana Maria Assis de Oliveira está pesquisando exatamente o tema no mestrado em andamento.

Ana Maria Assis de Oliveira, advogada e jornalista (Foto: Arquivo Pessoal)
Ana Maria Assis de Oliveira, advogada e jornalista (Foto: Arquivo Pessoal)

Autora do "Manual da Defesa em Ato Infracional", Ana Maria está encontrando provas acadêmicas da complexidade do quadro. Ainda que a reincidência e a necessidade de criar formas de ressocialização de fato sejam temas recorrentes, sequer há dados efetivos.

Hoje, nós não temos dados suficientes para dizer com toda certeza se a medida de internação cumpre ou não o objetivo de socioeducar. Nós falhamos muito quando o assunto é estatística", diz.

Ana Maria prossegue dizendo que existem indícios diversos demonstrando que a privação de liberdade pode ter efeito contrário ao esperado.

"Pelas condições ruins de habitabilidade das unidades de internação, pela falta de estrutura, falta de um programa de egresso onde esses meninos poderão ser acompanhados ao saírem da unidade e, principalmente, pela convivência dentro da unidade com outros adolescentes que também cometeram atos infracionais", enumera.

Em resultado parcial da pesquisa de Ana Maria, já divulgado em evento recente da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, dos dez primeiros processos analisados, julgados em 2019, dois meninos foram assassinadas a tiros depois de sair da unidade, e outros dois foram presos como adulto.

Para ela, isso é muito preocupante somado ao histórico social desses meninos. "Todos são de famílias vulneráveis. Isso demonstra o quanto os direitos que são violados na infância refletem na adolescência e o quanto isso afeta negativamente a segurança pública, tornando o nosso sistema falho"

Sobre o erro judicial citado na coluna, o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) foi consultado sobre providências que são tomadas em casos assim e não houve retorno até o fechamento desse texto. Assim que houver, será atualizada a informação.

Mapa prisional da Agepen mostra a distribuição por faixa etária de quem está cumprindo pena atrás das grades em presídios estaduais. (Fonte: Agepen)
Mapa prisional da Agepen mostra a distribuição por faixa etária de quem está cumprindo pena atrás das grades em presídios estaduais. (Fonte: Agepen)


(*) Marta Ferreira, que assina a coluna “Capivara Criminal”, é jornalista formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), chefe de reportagem no Campo Grande News. Esse espaço semanal divulgar informações sobre investigações criminais, seus personagens principais, e seu andamento na Justiça.

Entenda o nome:  Esta seção se chama assim em alusão à expressão "puxar a capivara", que usa o nome do animal  visto frequentemente em Mato Grosso do Sul para designar o acesso à ficha corrida de alguém envolvido com o crime.

Participe: Se você tem alguma sugestão de história a ser contada, mande para o e-mail marta.ferreira@news.com.br. Você também pode entrar em contato pelo WhatsApp, no Canal Direto das Ruas no número  67 99669-9563.  Clique aqui para mandar sua mensagem.

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