"Vale-tudo" na frente das escolas é herança ruim de motoristas aos filhos
Pais alegam não ter opções, a fiscalização constata que a multa de R$ 127 nem assusta e mau exemplo entra na rotina das crianças
Um Honda Civic para no semáforo fechado na rua Abrão Júlio Rahe, em frente a uma escola. Num lance inesperado, a condutora simplesmente sai do veículo, sem ao menos sinalizar, retira uma criança do carro, vai até a porta do colégio e retorna.
A cena na manhã de terça-feira (dia 6) faz parte do repertório do vale-tudo em frente de escolas particulares em Campo Grande. Uma das infrações favoritas é a fila dupla, que não cessa nem diante da presença de policiais militares.
Num cenário em que os pais alegam não ter opções, a fiscalização constata que a multa de R$ 127 nem assusta os endinheirados e que o mau exemplo entra na rotina das crianças, quem estuda o trânsito conta que sobra apenas uma pergunta. “Onde estamos errando para nossa Capital está desse jeito?”, questiona o especialista Carlos Alberto Pereira.
Para ele, a segurança dos estudantes poderia unir condutores, escolas e fiscalização na busca por solução, como flexibilizar horários ou estabelecer locais de entrada e saída em pontos diferentes. “A visibilidade de uma criança de 7, 8 anos no trânsito em movimento é pequena. Não tem reflexo como um adulto, é muito vulnerável a atropelamento. Isso justifica o empenho para reverte esse quadro”, diz.
Segundo Carlos Alberto, os estabelecimentos escolares poderiam assumir uma postura mais ativa, dialogando com os pais em busca de solução. Ele lembra que o poder público tem que fiscalizar, mas observa que pode ser oneroso deslocar equipes para as 15 escolas mais problemáticas em problemas de trânsito que vão de 20 minutos a meia hora.
“O restante da população precisa dessas estrutura em outros locais. Não estou fazendo a defesa da Agetran [Agência Municipal de Transporte e Trânsito]. Mas acho que o estabelecimento escolar precisa assumir a parcela de contribuição na questão da fila dupla, trabalhando com os pais”, afirma Carlos Alberto.
Sem saída – Na porta dos colégios, os condutores relatam que muitas vezes ficam sem saída e param em fila dupla mesmo sabendo que é errado. A reportagem permaneceu em frente à escola Maria Montessori, na Abrão Júlio Rahe, das 6h40 às 7h20 e registrou dezenas de irregularidades.
Para o escritor e advogado Daniel Ortiz, 75 anos, que esperava os netos chegarem, o problema só pode ser amenizado com intermediação da escola. “Se a escola não intervir, não adianta reportagem, não adianta nada. Tem que partir da escola a orientação aos pais. Só assim eles deixariam de parar em fila dupla, atrapalhando o trânsito”, diz.
Por segurança, a servidora pública Carolina Montinho, 38 anos conta que evita parar de forma incorreta, mas admite a dificuldade. “Trago duas filhas de 4 e 7 anos, e na hora de buscá-las é pior. É tanta falta de educação, que prejudica até quem quer fazer o certo. Diversas vezes fiquei presa, aqui, porque um carro atrapalhava minha saída”, afirma.
Uma advogada de 32 anos, que preferiu não se identificar, admite já ter se arriscado e parado em fila dupla para deixar ou buscar as duas filhas. Para a motorista, o problema é pior no horário da saída das alunos.
“Hoje consegui estacionar, mas nem sempre é assim. Às vezes coincide de sair a turma dos alunos maiores e, aí sim, o fluxo aumenta. Mas infelizmente não tem outra opção, não tem onde parar”, disse.
Nem polícia inibe – Equipe do Campo Grande News permaneceu cerca de uma hora em frente às escolas Máxima e Harmonia, localizadas na rua Goiás, Jardim dos Estados.
A reportagem se deparou com uma policial do Batalhão de Trânsito da Polícia Militar, que orientava a travessia da via. Mesmo diante da soldado, pais insistiram em desobedecer as regras de trânsito.
O motorista de um Honda Civic chegou a permanecer parado em frente a escola e, em fila dupla, por cerca de 7 minutos.
O tumulto complica a vida dos outros pais. Sidnei Perboni, 53 anos, já cogitou a mudança da escola. “Não dá para vir sozinho, na entrada vêm dois, um pra parar o carro e outro para descer com as crianças e na saída vem mais gente. Já cogitamos a mudança de escola porque é difícil”, explicou.
De acordo com a orientadora educacional Karla Serra, projetos relacionados ao trânsito têm sido desenvolvidos com alunos e pais no colégio Harmonia. “Na unidade I, no ano passado, foi realizado trabalho junto com a Agetran, enquanto na unidade II vamos trabalhar o tema na disciplina de filosofia”, afirma.
Outra medida é que os pais que param em fila dupla não tem os filhos chamados pelo sistema de som, uma forma de lembrá-los que tal prática configura infração de trânsito. A reportagem não conseguiu contato com a direção das outras duas escolas citadas.
Quer multar? - Chefe da Divisão de Educação para o Trânsito da Agetran, Ivanise Rotta relata que há mais de uma década o setor faz campanhas para orientar sobre o tema “Fila Dupla, não”. Ela divide os infratores em dois grupos quando flagrados.
“95% fala que realmente tem que estacionar e caminhar até a porta da escola. Mas tem aqueles 5% que não ligam, mesmo quando são fiscalizados. Fala: quer multar? Multa. Isso que dói no bolso é equívoco. A pessoa tem carro de R$ 100 mil, R$ 70 mil e a multa vai ser baixíssima”, diz Ivanise, sobre o desafio de educar condutores.
Parar em fila dupla é infração grave, com multa de R$ 127 e cinco pontos na CNH (Carteira Nacional de Habilitação). No ano passado, foram 692 multas por fila dupla em Campo Grande.
“E a pessoa que para em fila dupla é a mesma que usa o celular no trânsito, passa no sinal vermelho, abusa da velocidade. Se considera o mais apressado, o mais atrasado, o mais importante”, diz.
Não é bonito – Ivanise conta que não raro ouve adultos comentando que levam “puxão de orelha” das crianças pela postura no trânsito, como, por exemplo, ao furar o sinal vermelho.
“A criança não pode ter essa responsabilidade, quem tem a CNH é o motorista. A pessoa infratora fica achando lindo. Mas isso é vergonhoso. Quem tem comportamento ético na vida, vai ter comportamento ético no trânsito”.
Psicóloga e professora da Uniderp, Avany Cardoso Leal destaca que as crianças aprendem pelo exemplo. “O exemplo arrasta, ele é implacável em relação ao que é dito. A criança vai reproduzir o modelo”, diz. Anavy explica que a postura o trânsito reflete características da personalidade.
“Tem a questão do egoismo, satisfazer a minha necessidade. Não se importa se isso vai perturbar, incomodar”, afirma.