Caso de miséria é resolvido com "fiança", quando necessidade é por assistência
Mãe que deixou crianças trancadas sozinhas semana passada levanta questão sobre punição em vez de assistência
Na semana que passou, mais um caso que seria da alçada das políticas públicas de assistência social acabou estampando as capas de jornais de Campo Grande com manchete policial. Mãe de 25 anos, moradora do Jardim Noroeste, que foi presa e teve de pagar fiança de R$ 360,00, mais da metade do que recebe ao mês por ter deixado quatro filhos trancados sozinhos em casa.
A justificativa dela era de que precisava buscar a certidão de nascimento do caçula no cartório e, sem ajuda, deixou as crianças trancadas. Quando a Polícia Militar chegou, a cena era de miséria total, sem comida nos armários, a casa não tinha estrutura nem colchão para os pequenos dormirem.
Política pública - Vice-presidente do Cress (Conselho Regional de Serviço Social), Barbara Nicodemos explica que o caso seria uma questão de política pública de assistência social. O trabalho é dividido em duas frentes: de proteção social básica e proteção social especial. A primeira é desenvolvida pelo CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e trabalha mais a questão da prevenção. Já a segunda, desenvolvida pelo Creas (Centro de Referência Especializada de Assistência Social), é de proteção especial, quando já houve a situação de violação de direito da criança.
"O Creas vai agir a partir da provocação do Conselho Tutelar, que é o primeiro a ser chamado nestes casos, e a polícia sabe disso. Poderia ter chamado o Conselho Tutelar e tentado ali mesmo o acompanhamento pela assistência social para entender o quê e por quê acontece isso e trabalhar com essa família, ver se ela tem uma rede de apoio que possa ser amparada", diz Barbara.
Reproduzindo a fala dita pela própria mãe na reportagem, a vice-presidente do Conselho questiona "ela mesma falou, que se pedisse para alguém tomar conta, ninguém ia querer. Então precisa ver, qual é a rede de apoio dessa pessoa? Ela tem parentes? Não tem? O esposo tem parentes? Alguém que possa ficar com essas crianças em algum momento? Tudo isso é para se questionar e não criminalizar de maneira imediata a pessoa", levanta Barbara.
Sem escola - É importante frisar que há 1 ano e 4 meses, as escolas da rede pública estão fechadas por conta da pandemia. "Como é que essa pessoa sai para trabalhar? Com quem deixa essas crianças nesta situação que nem creche está funcionando? Não dá para sair criminalizando uma pessoa. É violação de direito da criança? É, é sim, mas também é do Estado que não tem no momento nada funcionando para que essa criança fique".
Como funciona - Barbara explica que Campo Grande tem os Cras (Centro de Referência de Assistência Social) e ainda os Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) para onde vão as violações de direito de crianças, mulheres e idosos.
O encaminhamento para estes centros é feito pelo Conselho Tutelar, delegacia, polícia ou Ministério Público. "Para fazermos então um acompanhamento familiar. Nós não fazemos o trabalho da polícia, fazemos o acompanhamento de ver o que está acontecendo com esta família", pontua.
Barbara explica ainda que vizinhos que presenciarem situações em que crianças, adultos e idosos estiverem em situação de vulnerabilidade podem ligar para os conselhos tutelares, Cras, Creas e se for o caso específico de crianças, para o Disque 100.
Assistente social há 19 anos, Barbara conta que vê em diversos casos o quanto a sociedade joga para as costas da mulher a obrigatoriedade de dar conta de tudo.
"Se é uma mãe solo, como vai fazer pra trabalhar? Essas questões a gente enfrenta diariamente. Tem situações que a mulher não tem parente nenhum por perto, ou às vezes até tem, mas aquela família não quer saber da situação. Existem conflitos familiares muito sérios e desemboca nessa situação de desamparo total. Não dá para sair criminalizando a família de imediato, a gente tem que tomar pra gente que as políticas públicas têm que atender e chegar às famílias que precisam", enfatiza.
No dia a dia das favelas - Desde 2019, Lívia Lopes é uma das coordenadoras da Cufa (Centro Única de Favelas) que atua em Campo Grande e vê de perto a realidade das famílias que acabam punidas antes de serem assistidas.
Em uma entrevista, Livia pontua o que acompanha com o que é relatado nas notícias e principalmente o quanto as doações e a solidariedade são pontuais e não rotineiras.
"A gente fala dentro da Cufa que são pessoas invisíveis, porque as pessoas acabam não percebendo que existem moradores, mulheres, mães que moram em comunidades de periferias, distantes do Centro e que necessitam de apoio", começa.
A realidade que os noticiários trouxeram desta mãe nesta semana é um dos infinitos casos que acontecem em todas as favelas do País. "A gente encontra mães que pela quantidade grande de crianças às vezes não conseguem deixar com ninguém, ou precisa levar junto, ou deixa sob responsabilidade do mais velho. Isso é muito comum, e não é porque ela quer, é porque ela não tem condições de deixar em nenhum lugar. Sem creche aberta, por exemplo, é impossível", contextualiza.
Como no caso desta semana, em que a mãe foi autuada em R$ 360,00 por abandono de incapaz, o que corresponde a 58% do que ela ganha por mês em uma casa que nem comida na geladeira havia, Livia diz que se choca.
"A gente que está em campo, vendo essas pessoas, eu sei o quanto isso é real. Fico indignada, porque é um sistema que não oportuniza essas pessoas. Se ela não tem educação, não tem curso de capacitação, não é apropriada para o mercado de trabalho e acaba ficando com esse tipo de emprego de catar latinha que não dá um retorno para quem tem cinco filhos. O sistema hoje no País não ajuda nem oportuniza pessoas que são invisíveis como ela".
A mãe em questão parou de estudar no 6º ano, desconversou sobre o fato de não ter o que comer em casa e pediu ajuda para consertar a janela quebrada pelo medo de que no frio, a fresta trouxesse o vento para dentro de casa.
Assim que as reportagens foram publicadas, a família recebeu dezenas de doações, muitas vindas de outras mulheres que se identificaram com a mãe. No entanto, este ponto também é levantado pela coordenadora da CUFA.
"As pessoas querem ajudar o próximo de forma pontual. Apareceu na mídia, ajuda, mas não é uma coisa que as pessoas têm costume de doar toda semana, todo mês, nem entender o porquê essas famílias estão nesses lugares", reflete.