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Mulheres e mães, elas vivem gestações entre a esperança e o luto

Preparadas desde a gestação para a morte dos filhos ao nascer, mães vivem nove meses de luto antecipado mas com esperança de uma melhora milagrosa para os filhos.

Adriano Fernandes | 08/03/2018 07:07
Três mães enfrentam rotina intensa de exames na Santa Casa por terem bebê com malformação congênita. (Foto: Saul Schramm)
Três mães enfrentam rotina intensa de exames na Santa Casa por terem bebê com malformação congênita. (Foto: Saul Schramm)

No dia 19 de maio do ano de 2012, o pequeno Raphael nasceu de parto de cesária, depois de uma gestação que foi no mínimo difícil tanto para ele quanto para mãe, que é manicure e hoje tem 29 anos. Quando ainda estava na barriga, aos 5 meses, o bebê foi diagnosticado com hérnia diafragmática congênita direita. Condição que na maioria das vezes leva o bebê à morte, logo ao nascer.

A manicure manteve a gestação e hoje, tem do bebê apenas uma memória de dor, e também resiliência, comuns a mulheres que resistem a situações dramáticas como essas. Não ter a identidade divulgada foi a condição desta mãe que relatou todos os problemas da gravidez, por causa da malformação do feto. 

O problema consiste em um defeito no diafragma, tecido que além de auxiliar na respiração, também separa os órgãos do tórax do abdômen (fígado, intestino, estômago, rins). A doença é rara e atinge 1 a cada 2,5 mil fetos.

“Quando o médico descobriu ele me alertou dos riscos, comentou sobre a possibilidade de uma cirurgia, até transplante, caso ele resistisse ao nascer. Mas mesmo assim ele poderia sofrer muito, ter problemas respiratórios porque tanto o coração quanto o pulmão estavam muito comprometidos. Era provável, inclusive, que ele já nascesse morto”, relembra a mãe.

Desde a descoberta da doença, até o parto, a mãe, conta que foram quatro meses se preparando para o pior, adiando enxoval, se dividindo entre o luto antecipado e a esperança de uma melhora milagrosa que nunca ocorreu.

“Ele nasceu e não ficou nem dois minutos perto de mim. Foi o tempo de cortar o cordão umbilical e ele teve a primeira parada cardíaca”, descreve a mãe que ao invés de um bebê nos braços, deixou o hospital com o atestado de óbito em mãos, direto para o enterro do filho, 32 horas depois do nascimento.

A hérnia diafragmática de Raphael está entre uma série de complicações que podem ocorrer em fetos durante o período de gestação e que, em algumas situações, leva a morte dos bebês poucas horas ou dias depois de nascer.

Só no ano passado, 274 bebês nasceram com a chamada malformação congênita no Estado, sendo 101, apenas em Campo Grande, segundo a Secretaria de Estado de Saúde. Em 122 dos casos em Mato Grosso do Sul, os bebês morreram por causa do problema. Só na Capital, foram 40 bebês mortos após terem nascido.

Ainda segundo o Ministério da Saúde, diariamente, em todo o país o número de mortes por malformação congênita, deformidades e anomalias antes ou depois de nascer, é de cerca de 20 bebês. Por ano, a média no país é de 7 mil mulheres enfrentando este tipo de gestação.

O pequeno Raphael morreu cerca de 32 horas depois do nascimento. (Foto: Paulo Francis)
O pequeno Raphael morreu cerca de 32 horas depois do nascimento. (Foto: Paulo Francis)

Na situação do bebê Raphael por exemplo, a má-formação do diáfragma fez com que os órgãos abaixo do tórax, se deslocassem para a região toráxica, comprometendo o funcionamento do coração e o desenvolvimentos dos pulmões.

Logo após o diagnóstico uma cirurgia fetal para tentar revertar o quadro em um hospital de Barretos, SP, também foi cogitada. Mas os riscos continuariam sendo muito severos. “Inclusive um dos motivos que me fizeram desistir foi pelo fato de o diagnóstico ter saído muito tarde. Meus pais, esposo, teriam que assinar um termo de responsabilidade porque o que estaria em risco não era só uma, mas duas vidas”, conta a mãe.

Esperanças – Na esperança de um diagnóstico que não apontasse a morte do filho, a manicure conta que passou pela avaliação de 13 médicos “dos mais baratos ao mais caro”. Mas todos atestavam a morte de Raphael, se não fosse em questão de minutos até horas após o nascimento. A sinceridade dos profissionais, segundo ela, acabou contribuindo para uma superação.

“Claro que quando eu descobri, chorei muito. Mas me apeguei a minha fé e nos quatro meses seguintes me preparei e a quem tivesse a minha volta, sobre o que iria acontecer”, pontua.

“Tinhamos no máximo o berço que era da minha primeira filha mas, de resto, não preparamos nem enxoval porque seria melhor do que ficar na expectativa sobre algo que não ia acontecer. Porque todos foram bem claros. Se ele não viesse a óbito ao nascer, seria horas depois ou no máximo dois dias”, acrescenta.

Mas, como na maioria dos casos de malformação congênita, a relação de risco mamãe-bebê, depende primeiramente da saúde da mãe. Durante os nove meses a manicure conta que seguiu a risca dietas e se preveniu contra qualquer tipo de doença, desde gripes a resfriados.

A Santa Casa de Campo Grande é referência no Estado para o tratamento de gravidez de risco. (Foto: Marcos Ermínio)
A Santa Casa de Campo Grande é referência no Estado para o tratamento de gravidez de risco. (Foto: Marcos Ermínio)

Até que na 36ª semana de gestação, uma infecção de urina fez com que mãe e bebê tivessem de ser internados para tratamento. E alí, no setor obstétrico da Santa Casa de Campo Grande os dois seguiram juntos até a 42ª semana. Período em que o risco à vida da mãe havia aumentado, levando ao parto por cesariana.

“Ele nasceu e por conta da primeira parada cardíaca já teve de passar por um pneumotórax (perfuração no tórax para entrada de ar nos pulmões) e foi para UTI (Unidade de Terapia Intensiva)”, completa. Desde o parto até quando foi atestado o óbito, a manicure conta que não teve contato com o filho.

“Fiquei internada junto dele mas por causa da cesariana, também não podia estar o tempo todo na UTI. Ele foi entubado, tomava sangue e remédios muito fortes e o quadro clínico dele poderia piorar a qualquer momento”, diz. 

Raphael foi registrado na unidade de saúde como qualquer outra criança. Mas, além da certidão de nascimento o atestado de óbito, também foi entregue e datava a madrugada do dia 21 de maio daquele ano. 

“Eu mal pude segurar ele, não amamentei e dali fomos para o enterro, onde eu também não pude ficar por muito tempo por causa da cirurgia. Depois que tudo passou, sempre que eu estava sozinha eu chorava porque eu já conversava com ele, fazia carinho e ele mexia para mim”, conclui.

Quatro meses sem Felipe - O dia 7 de março foi importante de duas maneiras distintas para a jornalista Marcela Albres. Ontem, dia em que ela retornou ao trabalho depois da licença maternidade, seu filho Felipe também completaria 4 meses.

O bebê foi diagnosticado com cardiopatia congênita. Nasceu com 7 malformações no coração, fez uso de medicamentos muito fortes já nos primeiros minutos de vida e passou por uma dentre três cirurgias que estavam programadas, antes de falecer 31 dias depois do nascimento. Marcela conseguiu o apoio do trabalho e pode se recuperar em casa nos últimos meses.

“Estou de volta ao trabalho hoje, dia em que o Felipe completaria 4 meses. Confesso que como ansiosa incorrigível, muitas vezes me peguei pensando como seria retornar ao trabalho deixando o bebê em casa ou na escolinha”, comentou. A história de luta de Felipe e Marcela já foi contada pelo Campo Grande News.  

Referência – A Santa Casa de Campo Grande é o hospital de referência no Estado para o tratamento de malformações congênitas, tanto cardíacas quanto neurológicas. Das 15 gestantes com gravidez de risco internadas no setor de ginecologia e obstetrícia da unidade, três mães têm fetos com malformação.

Uma delas é a porteira Adirlene de Fiqueiredo Braga, de 34 anos, que está na 35ª semana de gestação de Maria Vitória. O nome é sugestivo por se tratar da pequena guerreira diagnosticada com hidrocefalia no sexto mês de gravidez durante o pré-natal no Posto de Saúde do Jardim Macaúbas.

Desde então a porteira passou por avaliações de médicos no Hospital Regional até as últimas “temporadas” de internação na Santa Casa. Ela deve continuar internada no hospital até o nascimento da pequena, programado para a 37ª semana. “Quando eu descobri foi um susto porque eu não tinha a menor noção do que se tratava a doença. Até então eu já havia tido dois meninos mas queria a menina, que agora veio com esse problema”, comenta.

Apesar de menos grave se comparado a casos extremos de malformação congênita, a gestação de Adirlene exige acompanhamento frequente. As chances de sobrevida e recuperação da Maria Vitória, são promissoras, mesmo a doença não tendo cura.

Maria Vitória vai ser o nome da filha guerreira de Adirlene . (Foto: Saul Schramm)
Maria Vitória vai ser o nome da filha guerreira de Adirlene . (Foto: Saul Schramm)

E, por mais delicada que seja a gestação Adirlene comemora os progressos da filha a cada ultrassom. “A médica falou durante a ultima ultrassom que tirando o probleminha da cabeça (má formação do crânio) ela esta perfeitinha. Esta pesando 3,750 Kg”, se orgulha, com um sorriso tímido.

A mãe também conta que apesar do otimismo tem fé e consciência das necessidades da filha assim que nascer. “Talvez eu tenha que deixar o trabalho para me dedicar a ela mas minha fé em Nossa Senhora me fortalece. Eu tenho a consciência de que se Deus me deu uma filha assim é porque eu vou ter condições de cuidar”, concluiu a mamãe que é tão guerreira quanto a filha.

Nove meses de luto – As outras duas pacientes internadas com malformação congênita na Santa Casa de Campo Grande têm 37 e 25 anos e ambas têm fetos que sofrem com a mesma condição. A síndrome de Potter. Em resumo os bebês com esse problema não desenvolvem os rins, o que implica também na ausência de líquido amniótico no útero.

O problema também causa a má formação facial dos bebês, que podem nascer com olhos muito separados, orelhas baixas e queixo retraído, dentre outros fenótipos. E, neste quadro clínico a chances de uma sobrevida são mínimas, conforme explica o responsável técnico da ginecologia e obstetrícia da Santa Casa, Marcio Rezende.

“Nós nos empenhamos e torcemos ao máximo pelo melhor, mas sempre preparados para o pior. Em casos como o da síndrome de Potter, infelizmente o bebê pode até nascer bem, mas evolui para a morte. Então esta mãe é preparada a todo o tempo e mesmo assim ainda é muito difícil para elas”, comenta Marcelo.

A Santa Casa conta com um verdadeiro batalhão de profissionais voltados para o atendimento não só clínico mas psicológico e assistencial de mães nessas condições e que são encaminhadas de todas as cidades de Mato Grosso do Sul.

Para o responsável técnico dois fatores, ainda no início da gravidez também influem para a demora no diagnóstico e tratamento de malformações congênitas. Como a falta de planejamento familiar nos postos, por exemplo.

“Recebemos frequentemente gestantes em risco de apenas 13 anos. Muitas vezes são adolescentes que não tiveram acesso a um médico que as instruísse sobre um melhor anticoncepcional, por exemplo”, pontua.

Um pré-natal de má qualidade nas unidades de atenção básica também agrava esse contexto. “Se para uma mãe que descobre uma malformação já no início da gestação por um bom sistema de saúde e procura se informar, buscar tratamentos já é dificil. Em outros onde o diagnóstico é tardio, com oito meses, por exemplo, imagina o quão abalada não fica essa mãe. Elas chegam aqui arrazadas”, completa, Rezende.

Um dos quartos pela unidade obstétrica da Santa Casa. (Foto: Saul Schramm)
Um dos quartos pela unidade obstétrica da Santa Casa. (Foto: Saul Schramm)

Quando o diagnóstico da malformação é tão grave quanto o das duas pacientes com a síndrome internadas na Santa Casa, o acompanhamento é constante. Os cuidados são paliativos e priorizam a mãe, durante todo o pré-natal porque o risco materno aumenta junto com a barriga. Inclusive o de morte.

“A gestação é de grande risco e pode alterar exames laboratório, hipertensão , diabetes, dentre outros. Então elas passam por ultrassom a cada dois dias, recebem visitas médicas diárias e exames, como escuta de pressão, glicemia. Fora a equipe psicológica e assistencial que fica de prontidão assim como a cardiologia e neurologia. Essas duas mães estão sendo preparadas diariamente mas a gente não desiste nunca”, explica.

E além da rotina intensa de exames, a vida social das mamães também fica comprometida. Se somados os tempos de internação de cada uma, elas estão a mais de 85 dias na Santa Casa de Campo Grande. E devem continuar no hospital até o limite da gestação. “As altas médicas podem durar, no máximo, entre dois e três dias e mesmo assim ainda existe um risco. Mas temos que ir dozando essa frequência por que elas também precisam ter uma vida fora do hospital. Temos que ser médicos mas também humanos”, afirma Rezende.

Risco maior para quem ? – O contexto de gestações com fetos com malformação congênita esbarra em um assunto temido pelo conservadorismo e que é culturalmente um tabú, em todo o país. Mas desrespeita o corpo e decisão das mulheres, em especial de mães que tem a vida em risco por conta da gestação de filhos que, infelizmente ao nascer, morrem. O aborto.

Em 2012 o STF (Supremo Tribunal Federal) incluiu entre os casos em que se permite aborto legal no país, grávidas de fetos anencéfalos (sem cérebro). Os outros são de vítimas de estupro. Na votação da proposta, ainda naquele ano o ministro e relator Marco Aurélio afirmou que obrigar uma mulher a continuar com esse “tipo de gestação” seria uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, o que se assemelharia “à tortura”, disse o ministro, segundo publicação da Agência Pública.

Ou seja, apenas nestes dois casos citados acima o aborto é permitido. O que não leva em consideração quem mais fica em risco neste tipo de gestação, conforme ressalta Marecelo Rezende. “Mesmo em casos muito graves e de risco constante para mãe o aborto não pode ser feito. Então essa mãe é obrigada a levar a gestação até o final”, comenta. 

“Na Síndrome de Potter, por exemplo, o bebê se desenvolve mas infelizmente as chances dele viver são muito poucas e por pouco tempo. Mas um aborto nestes casos seria ilegal no Brasil”, pontua. Mas enquanto as discuções sobre o tema não avançam, Rezende garante que os esforços continuam priorizando a vida. 

“Nesses casos quem mais está correndo risco? A mãe ou o bebê que vai nascer morto ? O que elas vão levar para casa ? Entrar nesse dilema de não legalização é uma história muito difícil. E o país tem que sentar e pensar sobre isso. Cabe aos legisladores decidir. E por enquanto a lei que temos é essa”, complementa.

“Só que a partir do momento em que a mãe corre um risco ainda mais sério de morte e acontecer dos bebês precisarem nascer prematuros, nossas equipes médicas vão estar preparadas para encerrar essa gravidez (por cesária) e tratar esse feto, mesmo que não tenha nascido de forma natural”, conclui.

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