Casos de abuso com uso do ‘boa noite, Cinderela’ são alerta a mulheres
Nos dois primeiros meses do ano foram registrados sete casos nessa modalidade, cujas vítimas procuraram atendimento psicológico no Centro Especializado de Atendimento à Mulher
“Conheci um homem nas redes sociais. Tomei vários cuidados, chequei o perfil dele e era amigo dos meus amigos. Depois de várias conversas decidimos nos conhecer, mas marcamos em um local público por questões de segurança”, conta a estudante de engenharia civil de 19 anos, abusada sexualmente em dezembro do ano passado após cair no golpe boa noite cinderela.
Somente nos dois primeiros meses deste ano, foram registrados sete casos de violência sexual nessa modalidade. As vítimas procuraram apoio no Ceam (Centro Especializado de Atendimento à Mulher), do governo do Estado.
“Não passa pela cabeça da gente que pode acontecer uma coisa dessas. Tomei vários cuidados antes de nos conhecermos. Nas conversas ele parecia uma pessoa maravilhosa, era atencioso e agradável. Nos encontramos e ele nem encostou em mim enquanto estávamos em público”, relembra a estudante.
O passeio foi na Cidade do Natal e depois eles foram a uma pizzaria. No local, bastou uma ida da jovem ao banheiro para que a bebida fosse “batizada”. As substancias utilizadas nesse tipo de golpe variam, mas podem ser facilmente compradas em farmácias o que facilita ainda mais sua utilização.
São chamadas de “rape drugs” e quando associadas em coquetel provocam sonolência e perda da capacidade de reação deixando a vítima vulnerável. Em alguns casos, induzem a um estado de dormência profunda do qual só se desperta muitas horas após a ingestão.
“Comecei a passar muito mal, mas não entendia o que estava acontecendo”, lembra a jovem. Ela foi então levada a um motel, onde tiveram início os abusos sexuais. “Eu chorava e pedia para ele parar. Ele fez tudo o que queria comigo. Depois, me coloco em um Uber e me mandou para casa”, detalha.
Desorientada e sem entender direito o que tinha se passado, ela não contou nada aos pais ao chegar em casa. Lapsos de memória e lembranças embaralhadas em flashes são recorrentes no relato das vítimas desse tipo de crime. Foi quando ela ligou para um amigo e contou o que havia acontecido. Ele informou à família dela, que acionou a polícia e registrou a ocorrência.
Cultura do estupro - Considerado crime hediondo, o abuso sexual cometido com a utilização de drogas que impedem a defesa da vítima é previsto na lei como estupro de vulnerável, com pena de oito a 15 anos de reclusão. A penalidade é a mesma para quem abusa de menores de 14 anos. Segundo o artigo 217 do Código Penal Brasileiro, é caracterizado como estupro de vulnerável quem pratica o ato sexual não consentido com quem “por qualquer outra causa não pode oferecer resistência”.
Apesar de ser claramente previsto na legislação penal, esse tipo de crime enfrenta uma série de obstáculos para ser investigado. Primeiro porque muitas vítimas não se lembram direito do que aconteceu. Em seguida porque quanto maior a distância do período da ingestão, menores as chances de comprovar que foram utilizadas.
O maior dos obstáculos, entretanto, é social. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres, há uma cultura do estupro quando a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual para atenuar o comportamento violento dos agressores. Nela, é comum ver a banalização da violência sexual justificada por termos como: “ela usava saia curta”, “já era madrugada e ela na rua” ou até “balada não é lugar de mulher estar sozinha”.
O termo inclui também comportamentos recorrentes na sociedade, como piadas sexistas, cantadas na rua e assédio moral. De acordo com a ONU, a cultura do estupro fere não somente a liberdade das mulheres, mas os direitos humanos.
“Algumas meninas ficam confusas devido às circunstâncias da violência. Quando questionamos se elas consentirem, dizem que não. Então explicamos depois do não, tudo o que acontece é abuso”, destaca a subsecretária de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo do Estado, Luciana Azambuja.
Alerta - Iniciativas como canudos que mudam de cor após a adição de substâncias batizadas na bebida, esmaltes que alteram a cor quando se mergulha a ponta da unha no drinque e copos que indicam quando houve adulteração vem sendo desenvolvidas pelo mundo como forma de inibir a violência com o uso do boa noite cinderela.
Mas, enquanto não são popularizadas, é necessário que as mulheres fiquem atentas, principalmente em locais públicos como bares e boates, cenário de vários dos casos registrados. “É importante informar às pessoas próximas onde você vai estar, com quem e em qual horário. Por sermos mulheres, todo cuidado é pouco”, lamenta a estudante de engenharia.
Psicóloga do Centro Especializado de Atendimento à Mulher, do Governo do Estado, Célia Regina Cavalcanti destaca que vítimas desse tipo de violência precisam fazer a denúncia inclusive para serem submetidas ao protocolo de violência sexual, onde são ministrados coquetéis que impedem a transmissão de doenças. No Ceam, é prestada assistência social e psicológica gratuita e sigilosa a essas mulheres.