Para quem mal consegue botar comida na mesa, sabonete e pasta de dente é luxo
Moradores da comunidade relatam que itens de higiene pessoal nem entram na lista de compras e só entram em casa "quando dá"
Quando a maior dificuldade é botar comida na mesa, produtos de higiene básica são luxo na lista de compras. Escondidos no banheiro, pasta de dente pela metade e resto de sabonete, expõem a realidade de Cleidiana dos Santos.
Nunca antes, cuidar da limpeza, dos ambientes e do próprio corpo, foi tão necessário quanto desde março do ano passado, quando a pandemia do novo coronavírus chegou a Mato Grosso do Sul. Questionada sobre como tem sido se virar para conseguir manter "a casa" limpa e cuidar da higiene pessoal, a resposta de Cledi vem com tom de vergonha: “assim, do jeito que você tá vendo”.
Há cinco anos morando na Favela do Mandela, na região do bairro Coronel Antonino, Cleidi, de 46 anos, divide o lar com três filhos, de 25, 12 e 8 anos. Comprar shampoo, papel higiênico e sabonete para quatro pessoas é impossível e os itens só entrar em casa "quando dá".
"Comer e só comer mesmo", diz sobre com o que pode gastar. “Prefiro comida. Sempre tenho que escolher. Se eu for no mercado compro arroz, feijão, óleo, açúcar e essas coisas de higiene vou deixando por último”, completa.
No barraco, Ao lado do vaso sanitário, invés de papel higiênico, folhas de jornal ficam dobradas. O que ainda resta no banheiro é resultado de doações recebidas há cerca de 15 dias, de acordo com a moradora. “Shampoo não temos, para lavar o cabelo é só sabonete e sabão de barra. Sabonete ainda tem um pouquinho”, explica.
Sem trabalhar e com o filho sem emprego fixo, ela relata que a comunidade costuma receber alimentos e alguns poucos itens de higiene, mas que há fila para as doaçoes.
Quando vem, não vem para todos porque é para quem está precisando há mais tempo. Não vem o suficiente para todo mundo", diz Cleidiana.
“Tá difícil, tem vez que só ganhando”. Também moradora do Mandela, Ana Rita Alves, de 53 anos, relatam que artigos para higiene só entram em casa por doação. Morando com dois netos pequenos, ela conta que só molha o cabelo e passa um creme “porque não dá para comprar outras coisas". "Tudo é caro”.
Desempregada, Ana Rita narra ainda que o jeito tem sido torcer para que as cestas recebidas na favela venham com um pouco mais do que comida. Por ali, ela diz que o sabão em pedra é coringa. "Compro um pacote com cinco pedaços. Dá para lavar louça, lavar roupa e tomar banho. Faz tudo”, diz.
Aos oito meses de gestação, Nathalia Canhete, de 23 anos, diz que o sabão em pedra também tem dado conta em casa, mas que não sabe se quando a filha chegar a situação irá continuar a mesma.
“A gente fica pensando por conta do leite, fralda, shampoo, creme. Se Deus abençoar, a gente vai dar conta sim, temos que estar preparados. Vou correr atrás de trabalhar para não faltar nada”, diz.
Mesmo com os produtos necessários dentro de casa, ela relata que o medo de tudo faltar é diário. Por isso, não há dúvidas do que é prioridade. “Mais necessário, a gente pensa, é a comida, o alimento. Uma hora vai dar fome né?”.
Com sorriso um pouco mais tranquilo, Ana Paula Alves de Souza, de 35 anos, diz que shampoo e condicionador não faltam em casa. Ana relata que ela e o marido trabalham através do Proinc (Programa de Inclusão Profissional) e, por isso, é possível pensar de fato em higiene pessoal.
Além de um salário mínimo, a família recebe cesta básica. “Na cesta vem pasta de dente, sabonete e papel higiênico. Shampoo e condicionador a gente compra por causa da cesta que ganhamos. Se fosse para fazer a compra do mês e ainda comprar essas outras coisas não teria como", diz.
Pensando na hipótese de sustentar a família, com duas filhas, apenas com os salários, ela diz que continuariam tentando manter os produtos do lar, mas não bem como hoje. “Hoje a gente compra sabão de pedra mesmo estando caro. Até o que é meio fedido, que é o mais barato, está caro. Aquele lá mesmo que a gente compra”, diz.
Fome presente - A "escolha" por comer não é significado de que o alimento está garantido nas mesas de Mato Grosso do Sul. Dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2020, com números relativos a 2017 e 2018, indicam que mais de um terços dos lares por aqui entram na categoria de insegurança alimentar. Isso significa que quase 5% passam fome.
Dentro da Pesquisa de Orçamentos Familiares produzida pelo IBGE, 899 mil casas de MS foram avaliadas e 37%, 333 mil, estão dentro da alimentação insuficiente, seja no nível leve, moderado ou grave. Ainda de acordo com a pesquisa, em todo o Brasil, cerca de 3,1 milhões de lares passam fome.