Quando uma mulher erra, dura sentença é carregada de solidão e saudade
Das 278 internas no maior presídio feminino de MS, apenas 12 recebem visita íntima dos companheiros
Se solidão e saudade são palavras femininas, a extensão do dolorido significado se amplifica dentro dos muros da maior penitenciária para mulheres em Mato Grosso do Sul.
Numa sala do Estabelecimento Penal Feminino “Irmã Irma Zorzi”, em Campo Grande, os sentimentos ganham forma em três crianças abraçadas a mãe, num afeto coletivo, banhado por lágrimas, acumuladas em dois anos de distância física.
As meninas e o menino, que rodeiam uma presa de 34 anos, também estão na fotografia que dorme todos os dias com a mãe, que se aconchega ao retrato nas noites passadas em uma cela.
As crianças até poderiam visitá-la na unidade penal a cada segundo domingo do mês, mas a mulher não acha que seja bom para os filhos, que muito sofrem na despedida.
Na manhã de quinta-feira (dia 7), ela participou da visita assistida, num horário fora da visitação comum e uma medida para que não se percam os laços familiares.
No cárcere, visitas as mulheres são escassas diante do que se vê no complexo penal masculino, onde esposas, namoradas e mães cumprem rotina de preparar o prato preferido e se postar, religiosamente, na porta do presídio.
Os números contribuem para dar a dimensão dessa solidão feminina atrás das grades. São 278 internas e 75 familiares adultos cadastrados para a visita, além de 30 crianças.
Refinando os dados, se chega ao total de 16 inscritos para o contato íntimo (a visita íntima), sendo quatro casais homossexuais. Ou seja, são 12 homens que mantém laços afetivos com parceiras encarceradas.
A unidade feminina tem portas abertas para os visitantes, mas até por questão econômica a mulher prefere “segurar o rojão sozinha”, com receio de que os custos com transporte, por exemplo, faça falta no orçamento doméstico de quem fica com as crianças.
“A saudade é muito difícil”
Bastante emocionada por ter visto três dos seis filhos, a interna de 34 anos conta que há duas noites mal dormiu diante da emoção do reencontro. “Foi o meu presente, no dia 29 é meu aniversário de 35 anos. Eu já cheguei chorando. Mas não é bom que eles venham, você viu o jeito que eles ficaram? A saudade é muito difícil”.
O motivo da sua terceira passagem pelo presídio é o tráfico de drogas, crime que leva 90% das mulheres ao regime fechado.
De chinelos brancos, calça jeans e o chamativo alaranjado da camiseta do uniforme, ela traz no rosto a marca de batom deixada pelo beijo de uma das filhas. Sobre as três prisões, define que o motivo foi “sem-vergonhice”. Um dos muitos nomes populares que se dá a doença da dependência química.
Já vim duas vezes e essa é a que estou mais tempo sem ver meus filhos. As prisões foram por droga. Estava vendendo, usando, tudo. Foi sem-vergonhice né, eu tinha de tudo. Comecei a usar, vender, varava a noite no meio de droga. Tem dois anos que estou sem usar”.
O pai dos três filhos mais novos também está preso por tráfico de drogas. Eles conversam por meio de carta. Dos seis filhos, nenhum recebe pensão dos pais para ajuda nos custos. “Antes ser presa, eu pegava o Bolsa Família e deixei para a minha tia que tem a guarda”.
Trabalhando no setor de limpeza, ela espera sair do regime fechado em breve e seguir com o tratamento para dependência química. A Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) encaminha a presa que aceita o atendimento para comunidade terapêutica.
“A gente faz um calendariozinho e vai riscando”
Dentro da camiseta alaranjada com as inscrições EPFIIZ, as iniciais do estabelecimento penal, a mulher de 37 anos se emociona ao falar dos filhos. Os adolescentes de 17 e 13 anos estão num abrigo em Cassilândia, a 419 km de Campo Grande. A distância é vencida com visitas virtuais, pela tela do notebook, uma vez por mês.
Ela está na segunda prisão por tráfico de drogas. “Dessa última vez, a droga nem era minha. Meu sobrinho que passou e deixou, mas como eu era reincidente. Da primeira vez, um menino pagou para eu dirigir um carro com 68 quilos de maconha”.
Como também já vendeu cigarros contrabandeados diz que preparou os filhos ser diferente do que fazia de errado. Mas não se preparou para tanta saudade.
Amanhã é o dia de ver eles. Eu já começo a ficar ansiosa desde hoje. Quando falta um dia eu marco lá na folhinha e fico lá contando. Todo mês eu vou riscando a folhinha. A gente faz um calendariozinho lá dentro e vai riscando, contando os dias”.
Vinda do Paraná, ela morou por três anos em Cassilândia. Sem parentes em MS, nunca recebe visitas.
“Tráfico por amor”
Ao longo dos últimos sete anos, o cenário do “tráfico por amor”, quando a mulher entra no crime cooptada pelo parceiro amoroso, foi se transformando. Quando presas, elas contam que decidiram revender entorpecentes por motivo financeiro, principalmente como fonte de renda para manter a família.
“Na escuta psicológica, o que elas mais comentam é que foi devido à necessidade de sustentar e dar educação para os filhos. A mulher hoje está tão protagonista que até no crime ela gerencia, ela tem uma logística de atuação. Inicialmente, elas eram sim orientadas e faziam o tráfico a pedido do esposo, do parceiro amoroso. Mas hoje elas já estão liderando essa situação, motivadas para educação, manutenção e sobrevivência da família”, afirma a psicóloga Liléia Souza Leite.
“Elas se sentem constrangidas”
Na sala de atendimento - ornamentada por frases motivadoras e muitas lembranças de artesanato, presente das internas – a profissional constata que as mulheres ficam mais sozinhas durante o cumprimento da pena.
“Ou o esposo está preso, ou elas são separadas. Muitas não querem que o filho venha visitar porque não consideram saudável as crianças virem ao presídio. A mulher tem vários papeis construídos socialmente: mãe dona de casa, trabalhadora, esposa. Aqui dentro, elas ficam muito vulneráveis porque elas não têm mais diretamente o controle sobre todos os papéis. O que é notável é que as internas que não recebem visita dos seus familiares ou notícias têm maior adoecimento. Se sentem desamparadas, sozinhas, não se sentem amadas. O que vai causando distúrbio de humor, crise de ansiedade”, afirma a psicóloga.
O setor psicossocial busca aproximar as internas dos familiares. A visita presencial de adultos é duas vezes por mês (primeiro e terceiro domingo), crianças podem entrar no segundo domingo.
Além da modalidade presencial, há visitas virtuais, visita assistida (específica para crianças) e troca de correspondência.
“A mulher privada de liberdade se preocupa em garantir que a família esteja bem. Quando uma visita vem, recursos são empreendidos e pode ser que falte para a mãe, a irmã, para o lanche das crianças. E também o sofrimento da mãe, do filho vir dentro de uma prisão. Elas se sentem constrangidas com essa situação. Então, até nesse detalhe elas se doam. É uma contradição muito grande: quero que minha família esteja bem, mas me sinto sozinha”.
O presídio tem equipe multidisciplinar: médica clínico geral, médico psiquiatra, duas enfermeiras, uma técnica de enfermagem, um odontólogo, um auxiliar de saúde bucal, três assistentes sociais e uma psicóloga.
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