Agredida a pauladas, Claudinha é vítima de homofobia e descaso, relata sobrinha
Transexual está em estado grave após ataque; sobrinha relata história de vida e calvário para exame
Quando a doceira Daiane Almeida, 27 anos, chegou ao hospital para visitar a tia, foi informada que ela estava na cama 5. Olhou e não reconheceu ninguém. Perguntou novamente e indicaram o leito do canto. Quando se aproximou, levou choque. “A cabeça estava do tamanho de melancia, toda inchada, olho roxo, um corte grosso, costurado de fora a fora, tava irreconhecível”.
Daiane descreveu o estado físico da transexual Cláudia Aparecida Linda, a Claudinha, desfigurada após ser agredida a pauladas em ataque ocorrido na madrugada do dia 6 de março, em Mundo Novo, a 463 quilômetros de Campo Grande.
Atendida inicialmente naquele município, foi transferida para Dourados, onde permanece na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) em estado grave.
Os dois suspeitos das agressões, pai e filho, estão presos: Ademir Gonçalves de Oliveira, o Sabugo, de 47 anos, e Flávio Gean da Silva Oliveira, 27 anos.
Daiane conta que nunca se acostumou a chamar a tia por Claudinha e mantinha o hábito de chamar por Cláudio, que já é adaptação do nome de batismo. “Eu chamo de tio, minhas irmãs chamam de tia, ele não ligava não; a gente, ele não ligava”, disse.
A mãe de Claudinha e avó de Daiane, dona Auzeni, de 72 anos, também não se habituava, mas não tinha problemas com a orientação sexual da filha. “Sempre foi o mais chegado, fazia tudo por minha avó”, disse. Mãe de 7 filhos, Auzeni não fazia distinção e sempre foi muito próxima de Claudinha. As duas moram na mesma rua, de frente uma para a outra.
Daiane contou que a avó morou por cerca de 20 anos no Paraguai e se mudou para Mundo Novo há 7 anos. Enquanto viveu no lado paraguaio, Claudinha usava roupas masculinas. “Mas sempre com cabelo compridinho”, disse a sobrinha. Há cerca de 4 anos, começou a usar saias, vestidos e deixou cabelo maior.
Em Mundo Novo, Claudinha trabalha como diarista e, segundo a sobrinha, sempre levou vida discreta. “Nunca apresentou namorado para gente, trabalhava muito, tinha confiança das clientes”, contou.
“É uma pessoa muito boa, nunca incomodou ninguém, sempre ajudou minha avó, fazia de tudo para ela”, disse Daiane. A doceira contou que Claudinha era vítima de homofobia, mas disfarçava. “Meu tio contava que ia no baile, alguém chamava de ‘viado’, dava para ver que ficava triste, aí falava que não ligava”, contou. “Dava para ver que não se sentia à vontade.”
Agressão – Daiane conta que a última fez que encontrou Claudinha foi na sexta-feira (4), dois dias antes do atentado. “Pegou flores do jardim da minha avó”, se recordou.
No domingo, Daiane foi para o sítio da família levar a avó, onde passaria o dia com ela e o avô, que mora na propriedade. Na hora do almoço, recebeu ligação de amiga, falando que Claudinha estava no hospital. A sobrinha viu o vídeo da tia caída em frente da escola. “Eu achava que tinha sido atropelamento.”
Às 13h, foi ao hospital municipal de Mundo Novo. Ao chegar, a informação recebia era que Claudinha tinha se envolvido em briga de rua e estava “desacordada de tão bêbada”. Daiane não desconfiou da versão. “Não era de beber muito, mas se o médico diz isso, claro que você vai confiar”. O médico disse que liberaria a transexual assim que acordasse. Sobre os hematomas e inchaços, teria dito: “Quando tem briga na rua, tem inchaço mesmo”.
Daiane estranhou a demora para a tia acordar, mas ainda acreditava na hipótese de briga e bebedeira. Por volta das 19h30, recebeu ligação de mulher desconhecida, que pediu para marcar encontro. “Disse que tinha que falar comigo urgente, era importante”.
Daiane foi ao local combinado e encontrou duas jovens. Uma delas relatou o que viu na madrugada do dia 6 de março. A garota contou que estava a caminho de casa, quando ouviu gritos na frente da escola.
“Ela disse que um homem gritava ‘corre, viado, quero ver você correr agora, viado’”. Também agredia a transexual a pauladas, que pedia por socorro. “A moça disse que não queria se envolver, mas viu que o homem dava muita pancada na cabeça do Cláudio.”
Em choque, Daiane foi até o local da agressão e encontrou pedaço de madeira usado nas agressões. Voltou ao hospital e pediu que os médicos fizessem tomografia. Segundo ela, o mesmo médico ainda dizia que Claudinha estava bêbada e se recusava a fazer o procedimento.
Daiane insistiu, falou das agressões e o médico teria dito que a tomografia teria que ser paga. “Fui em casa, peguei um dinheiro que tinha, meu primo emprestou e a gente juntou os R$ 650”. No hospital, teria ouvido do médico que ela “estava gastando dinheiro à toa.”
Por volta das 21h, o exame foi realizado e a suspeita tornou-se realidade. Segundo Daiane, Claudinha havia sofrido duas fraturas no crânio, uma delas, com rachadura grande, outra duas fraturas no maxilar e trincado o osso do nariz. Também estava com coágulo no cérebro de aproximadamente 4 centímetros.
Somente aí, de acordo com Daiane, o caso foi tratado como grave. “Meu tio foi internado às 5h, ainda tava todo sujo, aí que foram limpar ele, colocar dreno”, disse. Foi pedida transferência para hospital em Dourados como vaga zero.
Daiane disse que Claudinha chegou a abrir um dos olhos, mas que estava opaco, vidrado. “Era olho morto, não mexia não piscava, eu alumiava com celular, mas não nem mexia”, contou.
Em Dourados, a informação recebida pela família é que Claudinha teve hemorragia, está intubada, sedada e em estado grave. Segundo relatado aos familiares, pode ter sequelas. Ontem, a equipe tentou retirar a sedação, mas teve que desistir, sem evolução clínica.
“Minha avó ficou desesperada, viu o vídeo na TV”, disse. Daiane conta que a Auzeni é mineira, alegre, gosta de receber visita com bolos e café. “Agora, fica só deitada”.
Investigação – Dos presos, apenas Flávio Gean confessou ter agredido a pauladas Claudinha. O outro, Ademir Gonçalves de Oliveira, o Sabugo, diz que estava pescando e até conta com testemunho de amigo que corrobora a alegação.
Porém, segundo o delegado João Cléber Dorneles, testemunhas alegam o contrário, as versões estão sendo checadas e há depoimentos previstos para esta quinta-feira sobre o caso. Daiane entregou o pedaço de madeira para perícia.
No boletim de ocorrência, consta que as desavenças começaram em uma tabacaria. Daiane disse que soube que Claudinha e o Sabugo haviam se encontrado antes, em uma lanchonete e que o suspeito disse que “ali não era lugar de viado”. Para evitar briga, a transexual foi embora.
Mas os dois voltaram a se encontrar na tabacaria e Sabugo teria dito que “não queria viado olhando”. A transexual só retrucou: “Você que está na minha frente”. Sabugo partiu para cima dela, que revidou com garrafada. Claudinha foi embora.
O homem foi embora e voltou armado. Testemunhas disseram que ele gritava: “Cadê aquele viado? Vou matar ele”. Em seguida, saiu e emboscou Claudinha, juntamente com o filho, agredindo a pauladas a transexual.
Testemunhas disseram à polícia que os dois se conheceram anos antes, pois Sabugo teria atropelado Claudinha em 2016. O delegado ainda apura o fato, mas, aparentemente, foi coincidência e que pode não haver conexão entre os fatos.
O delegado acrescentou que não foi informado pela família sobre o tratamento dado no hospital municipal. A reportagem entrou em contato com a instituição de saúde e aguarda retorno.
Daiane não tem dúvidas da motivação. “Foi preconceito mesmo, certeza, não tem outra explicação.”