Até na hora da vacina, índio em grupo prioritário fez correr o vírus do ódio
Racismo se espalhou por comentários em jornais à postagem no Instagram de academia
A boa-nova da vacina contra a covid-19 colocou Mato Grosso do Sul diante de um velho conhecido: o preconceito contra os povos indígenas. Vê-los entre os grupos prioritários para receber o cobiçado imunizante fez quem olha de cima correr para as redes sociais para destilar asco e bile. Por aqui, vale a crença de que não precisa o verniz do politicamente correto e a discriminação se espalhou por comentários em jornais à postagem no Instagram de academia.
Seguindo o tradicional PNI (Programa Nacional de Imunização) do Ministério da Saúde, a imunização contra a covid-19 começou por idosos, profissionais de saúde e indígenas aldeados. Logo no segundo dia de campanha, em 19 de janeiro, os ataques aos indígenas já marcavam presença nas redes sociais em Dourados, município que abriga a mais populosa reserva indígena do Brasil, com 18 mil pessoas.
Comentário em reportagem do Dourados News sobre a campanha de vacinação foi furioso: “Isso mesmo, imuniza essa peste que não produz nada...bando de cachaceiro”. Outra internauta tachou todos os índios de bandidos . “Eu acho um absurdo isso. Para nós que saímos todos os dias para trabalhar e produzir, pagamos impostos, temos que ser os últimos da fila. Agora, índio e bandido que só dão despesa têm que ser os primeiros. Isso é Brasil”.
A reserva indígena de Dourados rebateu que os moradores também pagam impostos, mas não têm a infraestrutura de quem reside na área urbana: coleta de lixo, esgoto, asfalto. “E ainda insiste em usar da maldade somente com os indígenas”.
Os ataques não passaram despercebidos pelo promotor João Linhares Junior, do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) em Dourados, que já tinha ido à Justiça por racismo em episódio em que ex-prefeito pediu “serviço de branco” e postagem que continha preconceito com nordestinos.
"Isso é inadmissível"
“Li a reportagem sobre a vacinação contra a covid-19 dos grupos prioritários e notei em alguns comentários de leitores com alusões evidentemente racistas em detrimento de indígenas, pois eles estavam compreendidos nesse rol prioritário estabelecido pelo governo. As expressões externadas por algumas pessoas eram patentemente depreciativas à comunidade indígena e tratava-os de forma muito pejorativa, menoscabando-os como se fossem seres ‘inferiores’”, afirma o promotor de Justiça, que levou as postagens para a PF (Polícia Federal).
Linhares explica que os comentários cruzaram a fronteira da liberdade de se expressar. “Isso é inadmissível, haja vista que a liberdade de expressão, consagrada na Constituição Federal, não confere a quem quer que seja a liberdade para agredir e discriminar, tampouco para desferir discurso de ódio ou de guerra”. O promotor destaca que a lei é clara ao impor que todos são iguais e merecem respeito.
Jamais devemos nos descurar disso. Como bem salientou Martin Luther King: ‘Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas ainda não compreendemos a singela arte de conviver com os irmãos”.
Justiça na rede
A união entre covid-19 e preconceito contra os índios também deu as caras na rede social Instagram. A postagem levou o MPF (Ministério Público Federal) de Dourados a mover dois processos: um cível e outro criminal no fim de 2020.
As rés são uma mulher e uma academia. No perfil da empresa, ela postou:“As academias são lugares e proliferação do Covid e precisam estar fechadas para que as pessoas fiquem com suas imunidades bem baixas, porém essas pessoas podem andar de bando sem máscara e se não me engano a Aldeia estava cheia de Covid!!! Acordaaaa Dourados!!!!”
No perfil particular da acusada, a reportagem verificou que o ataque contra os indígenas, confinados na zona de miséria do município, partiu de uma mulher branca e com fotografias registrando viagens, que vão do litoral brasileiro à metrópole Nova York.
No pedido à Justiça, o MPF pediu a retirada do perfil do Instagram da academia e descreveu, ponto a ponto, toda a discriminação que exala da postagem.
“A acusada praticou discriminação contra os indígenas; há no discurso vários elementos que incitam o ódio e a discriminação contra os povos indígenas, tais como o uso de fotografia sem autorização do direito de imagem, utilização da palavra ‘bando’ em sentido pejorativo, a generalização da ideia de que os indígenas transitam pela cidade sem o uso de máscaras, reforçando estereótipos preconceituosos já existentes acerca da comunidade indígena local e o uso da caixa alta e pontos de exclamação para incitar a população contra os indígenas”.
O juiz federal Rubens Petrucci Junior determinou a retirada da postagem, mas manteve a conta da academia ativa nas redes sociais.
“O perigo de dano, neste caso concreto, consiste na prevenção de novas postagens de conteúdo racista em desfavor da população indígena da cidade de Dourados-MS, sabidamente vulnerável em termos de saúde e carente de recursos financeiros e de políticas de assistência social”, decidiu o magistrado. Em caso de nova postagem racista, a empresária deve pagar multa diária R$ 500. Uma audiência de conciliação foi agendada para 27 de agosto.
Prioritário - A população indígena que vive em aldeias é sempre considerada grupo prioritário na prevenção de qualquer doença respiratória, seguindo recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde. Isso decorre da maior vulnerabilidade biológica a essas doenças e à dificuldade de acesso às unidades de saúde.