Carros apodrecem ao relento enquanto pacote anticrime “patina” na Justiça
Nem pacote anticrime consegue acelerar leilões de veículos que lotam delegacias
Em vigor há um ano, completado em janeiro de 2021, o chamado pacote anticrime provocou mudanças no Código Penal, Código de Processo Penal e na Lei de Execuções Penais, como forma de ampliar as ações contra o crime no País.
Incluída no pacote sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2019, a chamada “alienação antecipada dos bens” foi aprovada pelo Congresso para acelerar a venda de veículos envolvidos com o tráfico de drogas.
Só que em Mato Grosso do Sul a medida ainda patina, enquanto pelo menos 7.500 veículos abarrotam pátios de delegacias e até ruas próximas às sedes de organismos policiais. Muitos estão há anos ao relento, sendo deteriorados pela ação do tempo e valendo menos a cada dia exposto ao sol e à chuva.
De junho de 2020 a março de 2021, apenas 121 veículos foram leiloados no Estado. O problema foi tema de reunião da cúpula da segurança pública de Mato Grosso do Sul com o secretário nacional de Políticas Sobre Drogas do Ministério da Justiça, Luiz Roberto Begiora, hoje (3) em Campo Grande.
Policiais ouvidos pelo Campo Grande News afirmam que o principal motivo para a superlotação dos pátios é a demora do Poder Judiciário em determinar a alienação antecipada dos bens, embora a medida faça parte de lei em vigor há um ano.
A sede do DOF (Departamento de Operações de Fronteira) é um dos locais mais abarrotados de veículos. Por falta de espaço no pátio, carros e caminhões já ocupam ruas próximas ao prédio, localizado na Rua Coronel Ponciano. No local também funciona a Defron (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Fronteira).
O diretor do DOF, coronel Wagner Ferreira da Silva, afirma que só no pátio interno e no entorno do departamento existem pelo menos 300 veículos entre carros e caminhões. Só nos dois primeiros meses deste ano foram mais 90 apreendidos.
O oficial da PM confirma a demora para autorização da alienação antecipada por parte do Judiciário. “Isso acarreta na quantidade de veículos em nossos pátios, o que gera riscos à saúde pública, aumento de custo para controle, além de deterioração do bem apreendido”.
Antes do pacote anticrime, o destino dos veículos só era decidido ao final do processo. Na sentença, o juiz decidia pelo perdimento do bem ou devolução ao proprietário ou a “terceiros de boa fé”.
Como os processos são sempre demorados, a medida incluída no pacote anticrime permitiu antecipar a venda desses bens através de leilão mesmo durante o curso da ação penal. O dinheiro arrecadado fica depositado em conta judicial até a decisão final. Se o acusado for inocentado ou o bem liberado, o proprietário recebe o dinheiro da venda.
Em tese, a medida deveria acelerar a limpeza dos pátios, mas na prática a situação é bem diferente. Com a demora da Justiça em autorizar a alienação antecipada e diante de tantas apreensões de veículos, principalmente com droga, o número de carros e caminhões nesses locais aumenta a cada dia.
Polícia Civil – Na Polícia Civil a situação não é diferente. No prédio onde funcionam a Depac (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário) e a 1ª Delegacia de Polícia, na Rua Cuiabá, os veículos apreendidos ocupam toda a parte da frente e até calçadas de ruas próximas.
Situação inusitada aconteceu na delegacia, no mês passado. Por falta de espaço para ser guardada, a carreta bitrem com a carga recorde de maconha (29,2 toneladas) apreendida por policiais rodoviários federais de Dourados foi deixada estacionada em frente à delegacia.
Dez dias depois a polícia descobriu que traficantes estavam furtando a carga. Pelo menos 300 quilos de maconha foram retirados da carreta. O furto obrigou a Justiça a determinar a incineração imediata da droga. A carreta, avaliada em R$ 200 mil, entrou na lista dos veículos que esperam decisão judicial para ir a leilão.
“Nem para ferro-velho” – Para o advogado criminalista douradense Marcos Santos, o abandono desses veículos em pátios de delegacias da Polícia Judiciária e até mesmo da Receita Federal é desserviço à sociedade.
“Primeiro porque viram locais de proliferação de roedores, insetos e animais peçonhentos, além de serem criadouros para o mosquito Aedes aegypti. Segundo, porque quando são levados à venda após a sentença penal condenatória, estão tão deteriorados pelo tempo que já não têm quase nenhum valor de mercado. A grande maioria acaba sucateada, tem peças furtadas e não serve nem para ferro-velho”, afirmou.
Segundo ele, o Poder Judiciário precisa tirar do papel de forma mais efetiva a alienação antecipada, prevista na lei justamente para garantir a preservação de valor desses bens.
“A legislação é clara ao definir que a medida será decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou por solicitação da parte interessada. Em vez de ficarem expostos ao tempo, se deteriorando e oferecendo riscos à população, esses veículos deveriam ser alienados de forma rápida e o dinheiro depositado em conta judicial para ser devolvido ao acusado, em caso de absolvição, ou transferido para programas de segurança pública”, avaliou.
Conforme o criminalista douradense, a Constituição Federal define que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal e após sentença penal condenatória com trânsito em julgado. “Agora, imagine a situação em que uma ação penal pode demorar três, quatro, cinco anos até chegar à decisão que não cabe mais recurso. O bem apreendido e exposto ao tempo já não terá qualquer valor”.
Marcos Santos explica que a antecipada se justifica em situações excepcionais, sobretudo quando não restar dúvida de que o veículo apreendido é fruto de ilícito penal.
“O parágrafo primeiro do artigo 4º da Lei 9.613/1998 já previa, antes mesmo do pacote anticrime, que a alienação antecipada deverá ser realizada para preservação do valor dos bens. O que vemos hoje é que as autoridades do Poder Judiciário e o próprio Ministério Público não têm dado a devida atenção a essa questão, deixando delegacias abarrotadas de veículos apreendidos”, afirmou o advogado.
TJ – O Campo Grande News procurou o Tribunal de Justiça para perguntar se existe relutância por parte dos juízes estaduais em utilizar a medida prevista no pacote anticrime.
A assessoria informou que o Tribunal havia se manifestado sobre o assunto na reunião do presidente da Corte Carlos Eduardo Contar e do corregedor-geral de Justiça Luiz Tadeu Barbosa Silva com o secretário estadual de Justiça e Segurança Pública Antonio Carlos Videira, no dia 19 de fevereiro.
Na reunião, da qual participou também o coronel PM Edilson Osnei Nazareth Duarte, superintendente de Segurança Pública e Políticas Penitenciárias, Videira manifestou preocupação com a lotação dos pátios com veículos apreendidos e citou insatisfação dos moradores do entorno, risco de proliferação do mosquito da dengue e o prejuízo do erário com a segurança desses veículos.
“Os juízes não têm medido esforços no sentido de adotar de forma célere o procedimento de leilão. Afinal, antes do recebimento de um veículo sucateado pelo tempo, melhor que se priorize o leilão, com o valor líquido arrecadado depositado na conta judicial”, disse Luiz Tadeu, naquele dia.
Ainda na audiência, o desembargador anunciou que entraria em contato com juízes do setor para adotar medidas para diminuir o número de veículos nos pátios das delegacias do Estado. A reportagem procurou o Ministério Público de Mato Grosso do Sul, mas até o fechamento deste material o órgão não havia se manifestado.