Pobreza em MS se chama Indiara, Maykon, Leila e tantos outros nomes
Com vidas precárias, moradores de favela da Capital dão rostos a números da desigualdade
Cansada de ver os filhos de sete e nove anos esperarem em vão por camas com cobertas do Homem Aranha, prometidas por uma mulher que, certa vez, visitou a favela, localizada no Jardim Caiobá, em Campo Grande, Indiara Flores de Lima, 27 anos, decidiu apresentar às crianças o lado amargo da vida. “Ela enganou vocês”, disse a mãe aos filhos, acordando-os, a contragosto, para uma realidade, profundamente marcada pela desigualdade social.
Desempregada, mãe de três crianças, grávida de cinco meses, ajudada pelo pai, catador de material reciclável, Indiara vive, em seu cotidiano, as dores que as estatísticas não conseguem traduzir. Os números, no entanto, têm sua importância – mostram que o dia a dia de Indiara não é exceção. Em Mato Grosso do Sul, os 5% mais pobres dividiam, em 2016, 0,44% do rendimento e a parcela 1% mais rica concentrava 9,7% da renda total do Estado.
Essa disparidade, verificada pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), relaciona-se a outros dados do mesmo estudo, referentes a condições de moradia, posse de bens, escolaridade e tantas outras estatísticas. Uma parte delas, entretanto, já é suficiente para reforçar que é preciso avançar muito para que haja menos famílias como a de Indiara.
Lares precários – De acordo com a PNAD, das 890.166 moradias existentes em Mato Grosso do Sul em 2016, 82.990 (9,3%) não contavam com serviço de coleta de lixo. Em 168 mil domicílios, as famílias cozinham em fogão à lenha. Há, ainda, 61.246 casas ou taipas com paredes externas sem revestimento e 10.818 construídas com materiais impróprios.
Quanto a bens domésticos, não há geladeira em 9.019 lares do Estado, o que corresponde a 10,13% do total dos domicílios; 329.774 famílias (37%) não têm máquina de lavar roupa; aparelho de televisão, embora seja um item muito mais presente, não existe em 24.407 (2,74%) residências.
Abismo na renda – Entre outros aspectos da desigualdade socioeconômica, está a disparidade na distribuição de renda. Em 2016, havia 2,61 milhões de pessoas morando em Mato Grosso do Sul, dos quais 1,65 milhão (ou 63%) recebiam algum tipo de rendimento.
A massa da renda mensal per capita equivaleu, no ano passado, a R$ 3,37 bilhões no Estado. Desse valor, R$ 15 milhões (ou 0,44%) foram divididos entre 82.400 pessoas (os 5% mais pobres), o que correspondeu à média de R$ 182 por mês para cada uma.
Por outro lado, o pequeno grupo de 1% ou 16.480 sul-mato-grossenses mais ricos contaram com a soma de R$ 329 milhões (9,7% do total) – média per capita próxima de R$ 20 mil mensais. Com essa diferença, o que o rico ganha em um mês o pobre só receberia em nove anos.
Escolaridade – A desigualdade de renda está associada, entre outros fatores, a tempo de estudo. Das pessoas com algum rendimento em 2016, 44 mil (ou 3,51%) eram analfabetas. Elas recebiam, em média, R$ 1.011 por mês. No lado oposto, estão 216 mil com curso superior, cuja renda média mensal era de R$ 4.417 no ano passado.
“Não tenho comida e nada pra eles. Então, a gente come na casa da minha mãe" (Indiara, 28 anos, desempregada)
No extremo mais pobre desses números, estão famílias como a de Indiara. Ela mora em um barraco com dois filhos. Tem ainda uma menina, de dez anos, que vive com a avó paterna. Além disso, está na quarta gravidez e, mesmo com cinco meses de gestação, não sabe nem ao menos o sexo da criança, porque ainda não fez ultrassom.
"Pelo SUS [Sistema Único de Saúde] demora muito. Também não consigo fazer, porque não tenho endereço. E a mulher [a pessoa que a atendeu no posto] fala que tem que ter pelo menos um número e aqui não tem nada!", contou, acrescentando que foi orientada, ainda, a fazer acompanhamento na rede particular. “Mas não tem como, é muito caro”, objetou.
Sem trabalho, Indiara não tem dinheiro nem mesmo para alimentar os meninos e a si mesma. “Não tenho comida e nada pra eles. Então, a gente come na casa da minha mãe. Meu pai cata material reciclável. Com o que consegue, ele dá um dinheirinho para as crianças comer um doce ou comprar alguma coisinha”, contou.
O barraco onde Indiara mora também não é dela. O pai conseguiu emprestado de outra pessoa. “Nem esta geladeira é minha. É dele [do dono do barraco] e ele ficou de vir buscar”, disse. A jovem mora sozinha com as crianças depois que se separou do marido. Ele ficou com a casa, conseguida pela Emha (Agência Municipal de Habitação).
Presente que não existiu – Das lembranças de Indiara, uma das mais dolorosas é a cena dos filhos ansiosos, correndo atrás de carros, aguardando um presente que nunca veio.
No Dia das Crianças, voluntários foram à favela entregar doces. "Nesse dia, uma mulher disse a meus filhos que ia dar uma cama pra eles e uma coberta do Homem Aranha, mas até hoje ela não apareceu”, rememora.
A promessa suscitou nos meninos a esperança de ter algo distante da realidade de consumo da família. “Os coitadinhos ficaram esperando pela mulher. Sempre que descia um carro, eles corriam para ver se era ela”, relatou.
Indiara precisou, então, fechar os parênteses do sonho e seguir com a realidade da escassez. “Eu disse pra eles: ‘Ela não vai voltar, ela enganou vocês, não vai trazer mais nada'”. E deixa um desabafo: “Isso é muita crueldade com criança. Pra que prometer se não vai cumprir? Adulto até sabe quando uma promessa não é de verdade, mas criança não. Eles criaram esperança e foram enganados por ela".
O rico quer tudo para ele; o pobre, mesmo com pouco, não vê problema em dividir” (Maykon, 28, mecânico desempregado)
Assim como Indiara, o mecânico desempregado Maykon Cristhian Nogueira, 28, também vive o drama da falta de moradia. Sem dinheiro para aluguel, ele construiu uma casa em área que não era sua, nas imediações da Avenida Guaicurus. Foi despejado e perdeu quase tudo. Depois disso, foi para a favela do Jardim Caiobá.
"O dono tinha dito que ia negociar com a prefeitura, desde que não mexessem na outra área dele, que ele já tinha vendido”, conta Maykon. Acontece que algumas pessoas entraram no outro terreno, fazendo com que o proprietário decidisse tomar tudo de volta. “Ele já estava disposto a dar o terreno para a gente", lamenta-se.
A esposa de Maykon está grávida e, há quase uma semana, fica com a mãe para ser ajudada no acompanhamento médico. "Eu fiquei triste, mas com a comida feita à lenha, eu sinto que fico mais forte”, disse o mecânico, enquanto preparava o almoço.
O fogão à lenha não serve apenas para “fortalecer” Maykon e amenizar a saudade da esposa. Cozinhar assim também é uma alternativa para reduzir gastos, especificamente o relativo a botijão de gás, que tem encarecido continuamente.
E diminuir as já poucas despesas é necessário a Maykon, que não consegue serviço como mecânico e, por isso, mantém a si e a família com coleta de material reciclável.
"Existe uma diferença entre o rico e o próspero: o rico quer tudo para ele, quer acumular; o próspero, mesmo com pouco, não vê problema em dividir”, diferenciou, possivelmente com base em alguma experiência religiosa.
Mesmo na pobreza, Maykon considera-se, coerente com o que acredita, uma pessoa próspera – sempre que possível, ele divide, segundo contou, o pouco da comida que tem.
"Tudo o que a gente quer é algo que nos dê um alívio. O pessoal lá de cima precisa entender isso" (Leila, 53, doceira por necessidade)
Leila Flores de Lima, 53 anos, doceira por necessidade, é mãe de Indiara. Assim como a filha e o vizinho Maykon, Leila tem entre os agravantes de sua situação o problema do desemprego. Ela acredita que o empecilho esteja no local onde mora.
"A gente até tenta arrumar um emprego, mas tem muito preconceito. Eu entrego currículo e quando perguntam onde eu moro, eles já recusam, porque é em favela. Eles não dão uma chance. Daí o pouco que eu consigo é vendendo as trufas", reclamou.
Mas a necessidade é tamanha que assola a tentativa de ter um negócio. “Muitas vezes, tenho que gastar o dinheiro que tava reservado pro chocolate. Nem isso a gente consegue fazer, porque não tem material", queixa-se a doceira.
Morar em favela não dificulta apenas a entrada no mercado de trabalho. Também é uma barreira para fazer valer os direitos. É o que ocorreu quando Leila tentou ser ressarcida do prejuízo em sua casa, provocado por um motorista, que estacionou o carro e não ergueu o freio de mão.
O veículo, desgovernado, acabou atingindo a varanda do barraco da doceira. "Eu fiz um orçamento, não ficou caro. Ficou em R$ 120. Perguntei se ele não ia me ressarcir, ele disse: 'Eu não, você que está errada morando na rua'".
Leila olha em sua volta e conclui algo evidente em seu cotidiano: “A vida não tá fácil!”. E acrescenta: "Tudo o que a gente quer é algo que nos dê um alívio. O pessoal lá de cima [os políticos] precisa entender isso. Eles não passaram o que a gente passa, ou se passaram, já se esqueceram."