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Economia

Há 7 décadas, Teodózio é o retrato de região que se transforma graças ao leite

Rochedinho entrou na rota do turismo de natureza e se consolida pelas riquezas culturais provenientes do campo

Cleber Gellio | 04/09/2022 12:24


“Fui nascido e criado aqui, época boa hein. Eu fiquei internado na cidade de domingo a quinta, mas parece que foi um ano. Parece que não passava o dia, não passava a noite. A gente para cá [sítio] pega até mais saúde. Quase nunca viajei na minha vida, aqui no estado mesmo conheço pouca coisa”, conta o produtor rural Teodózio de Souza

A fidelidade do homem de 71 anos ao campo é uma marca na vida dele ao lado da esposa, Sidnéia dos Santos Souza, 70, no modesto sítio, localizado no distrito de Rochedinho, distante 24 quilômetros de Campo Grande.

Ali, no lugarejo conhecido como Pateiro, junto aos pais e aos sete irmãos, o caçula cresceu se dividindo entre a lavoura e a ordenha. Foi neste sítio também que conheceu a esposa e companheira pelos últimos 46 anos.

Com passar do tempo e a morte dos pais, os irmãos tomaram outro rumo, mas Teodózio permaneceu como o guardião de um patrimônio que ainda mantém viva a memória da família, tendo como carro-chefe o queijo caipira, feito artesanalmente a partir de leite cru.

A produção do queijo artesanal no entorno do distrito é altamente relevante para a composição da renda de famílias de produtores tradicionais e para a manutenção de suas propriedades rurais. E foi nesse ambiente que o casal recebeu nossa reportagem na madruga do dia 1º de setembro.

A entrada da propriedade, de aproximadamente 70 hectares, fica na margem esquerda da MS-010, para quem vai no sentido Capital/Distrito. Porém, a viagem começa mesmo quando entramos na estrada de chão. Ainda sob o luar, o cantar dos pássaros e o voo da coruja buraqueira no topo do poste de cerca.

Todo santo dia o retireiro Teodózio levanta às 3h da manhã para ordenhar (Foto: Marcos Maluf)
Todo santo dia o retireiro Teodózio levanta às 3h da manhã para ordenhar (Foto: Marcos Maluf)

Por volta das 3h, o café já estava passado e bolo batido à mão, assado no forno à lenha. Entre um gole e outro de café, Teodózio puxa a cadeira encostada na parede, que por sinal é seu canto favorito, corta uma fatia de queijo e lembra do passado. Quando ele começa a falar é difícil de se concentrar. Além dos queijos nas tábuas suspensas para secar, suas características físicas nos transportam a um Brasil distante e mítico.

De barba e cabelo longos, fala curta, pele castigada e olhar estonteante, me diz que nunca sai do Estado e que um de seus maiores desejos era o de conhecer o município de Maracajú, a 160km da Capital, onde vivia um antigo patrão. Àquele senhor que atravessara sete décadas de história, só arredara os pés de sua moradia para fora de MS uma única vez e ainda a trabalho. “Fui uma vez para Goiás tocar uma lavoura e nunca mais. Para fora também não tenho vontade, não conheço nem o meu estado”.

Ele é o retrato da resiliência de mais de 30 milhões de homens e mulheres no país que vivem no campo, segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Em comum, além da forma simples de viver e tratar a terra, carregam em si a tradição de transmitir às gerações futuras os saberes e costumes que aprenderam com seus antepassados.

Todo o cenário reforçam isso. Na parte externa da sala de ordenha, o 'radinho' de pilhas pendurado, em cima de uma lata velha e enferrujada, ecoa o som que faz os animais se acalmarem todas as manhãs para a retirada do leite. No ritual diário, o balde sempre volta cheio à sede do sítio.

“Eu comecei a tirar leite com sete anos e tiro até hoje, mas era mais a minha mãe que mexia, fazia requeijão, vendia o leite. E assim a gente viveu aqui. O requeijão dela era bom demais”.

Teodózio e Sidnéia, às 2h30 da manhã secando queijos feitos no dia anterior (Foto: Marcos Maluf)
Teodózio e Sidnéia, às 2h30 da manhã secando queijos feitos no dia anterior (Foto: Marcos Maluf)

Teodózio lembra de quando a propriedade pertencia aos pais, era formada apenas por cerca de 32 hectares. Aos poucos, sob sua administração, foram adquirindo mais áreas até chegar ao tamanho atual, onde cria por volta de 100 cabeças de gado, entre vacas leiteiras e bezerros.

No ano passado, o criador chegou a desanimar, devido às baixas cotações do litro de leite no mercado sul-mato-grossense. O preço médio pago ao produtor do estado em julho de 2021 foi R$ 2,10/L. “Eu tirava cerca de 350 litros por dia e passei para aproximadamente uns 50 litros, só para fazer o queijo mesmo e manter as despesas. Os bezerros machos vendo para benfeitorias na propriedade como cercas, por exemplo”.

Já em julho deste ano os produtores que produzem de 0 a 100 litros/dia receberam em média R$ 2,30, e os de 100 a 300 litros/dia receberam R$ 2,44, enquanto os acima de 300 litros/dia, ganham R$ 2,49.

Sidnéia prepara o coagolante para iniciar processo de fabricação (Foto: Marcos Maluf)
Sidnéia prepara o coagolante para iniciar processo de fabricação (Foto: Marcos Maluf)

Tudo funciona em família

A saudosa mãe do produtor chamava-se Cecília e era madrinha de batismo da esposa dele, Sidnéia. Ela também era amiga de Leonidia, mãe adotiva de sua nora, com quem compartilhava informações sobre fabricação de produtos da roça, como o queijo caipira.

Hoje, ao lado de Sidneia e dos filhos, Cecília Maria, 46, Flávio, 42 e Fábio, 41, fabrica seus próprios queijos. Há 22 anos, eles vivem da renda proveniente da comercialização dos produtos do sítio.

“Nos meses de janeiro, fevereiro, por exemplo, a gente faz cerca de 15 queijos por dia. Hoje são uns quatro ou cinco. Mas é que agora o preço está em torno de R$ 30,00 a peça”, diz Sidnéia.

A procura pelo produto é tanta que só os dois não conseguem atender a demanda. Outro fator que começa a comprometer o negócio do casal é o vigor físico de ambos.  “A rotina é bastante puxada. A gente já está velho para nos levantarmos às três da manhã para lavar, secar, enfaixar e colocar na tábua”, explica ela.

Para complementar o orçamento ainda são produzidos e comercializados no local, galinha, ovos, além de doces e derivados do leite. “Fiz um curso pelo Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), aprimorei o que eu já sabia e aprendi a fazer coisas novas. Hoje faço doce de leite, requeijão cremoso e pastoso, geleias de frutas e compotas, também o doce do queijo curado. É disso que a gente vive e é por isso que eu ando”, comenta a esposa.



De geração em geração

Sobre as perspectivas da atividade na região e se a tradição do beneficiamento do leite será repassada às futura gerações, ela é categórica. “Já teve menos gente interessada, mas hoje tem muitos querendo aprender e já fazendo queijo. Isso é muito bom”.

Dos três filhos de Sidnéia e Teodózio, Cecília é a única mulher. Assim como a mãe, a primogênita aprendeu ainda durante a infância, transitando em meio às mulheres mais velhas, a fabricar o queijo caipira. Até que certa vez, quando tinha 21 anos, recebeu de um amigo da família o convite para estudar na Capital. Como forma de se manter na cidade, trabalharia na fábrica de queijos, onde o futuro patrão a ensinaria a produzir outra variedade: o queijo tipo frescal.

Não demorou muito e com aptidão para o ramo aprendeu o novo ofício, porém, o que ela não imaginava é que a profissão, que seria o trampolim para outra atividade, a acompanharia até os dias de hoje. Seu destino começou a mudar quando engravidou de Amanda, 24 anos, sua única filha e que educou sozinha através do dom que herdou da mãe de manipular o leite e transformá-lo em queijos.

“Minha filha desde que nasceu nunca me viu outra coisa, a não ser uma mãe que levantava de madruga e a deixava na creche, fazia o queijo e voltava para buscá-la. Muitas vezes nas férias ela estava comigo na queijaria, criada literalmente no meio do soro”, Cecília Maria.

Desde então, há 25 anos, ela trabalha na mesma fábrica, que há quatro trocou de dono, mas que até hoje mantém a mesma mão que despeja o sal e dá sabor às 350 peças produzidas semanalmente. Sem pestanejar, a queijeira não esconde a satisfação pelo o que conquistou na Capital, por meio do que aprendeu no campo, quando vivia na casa dos pais.

“Desde que nasci fui criada nesse ramo, meus pais sempre foram do manejo com o gado, da agricultura. O leite para mim é vida, é minha profissão de onde tiro meu sustento e de onde meus pais a vida inteira tiraram o sustento da família. Ele criou os filhos com o leite e eu criei a minha filha com o leite também”, diz Cecília.

Cecília, filha mais velha do casal, na fábrica de queijo em Campo Grande (Foto: Cleber Gellio)
Cecília, filha mais velha do casal, na fábrica de queijo em Campo Grande (Foto: Cleber Gellio)


Inovação

Para mostrar os detalhes de uma queijaria artesanal e os procedimentos necessários para o funcionamento dessa agroindústria, o Senar lançou este mês um vídeo 360 °, a partir de uma queijaria em Minas Gerais.

O vídeo mostra um tour pela queijaria Rancho Maranata, onde são produzidos queijos inspirados nas receitas tradicionais locais na Serra da Mantiqueira.

A visita virtual "faz parte das novas tecnologias que a instituição está adotando nas ações educacionais e permite a visualização em todos os ângulos da queijaria, além de detalhar todo o processo produtivo, desde a ordenha do leite até o momento em que o queijo artesanal é finalizado", conforme explica a coordenadora de produção e distribuição de materiais, Fabíola Bomtempo. Clique aqui para ver o vídeo

O futuro é agora

Carlos Caetano, 49 anos, é criador de cabras em Rochedinho e criou o Sítio Harmonia para agregar valor aos produtos. “Em Campo Grande não há turismo rural. O turista que visita o Estado está de passagem e fica um dia no máximo e quais são os atrativos? Já em Rochedinho temos um monte e de fácil acesso para quem quiser conhecer. Compramos o sítio com a intensão de criar cabras e produzir além do próprio leite, também o queijo. Depois de dois anos, passamos a comercializar. No começo, como não tínhamos onde expor nossos produtos, oferecíamos para degustação entre amigos e assim fomos aprimorando”, lembra.

Já em 2015, com a produção consolidada e clientela formada, Carlos acreditava que poderia explorar o negócio de uma maneira mais efetiva, abrindo a porteira do Sítio Harmonia para visitação, servindo café da manhã e apresentando ao público, principalmente da área urbana, os processos de criação e produção de um estabelecimento rural. Porém a dúvida naquele momento era de como seria a alimentação matinal.

“Queríamos um café da manhã que tivesse uma história, daí a gente chegou ao resgate da cultura pantaneira, de se comer bem. Montamos o cardápio e nele inserimos o quebra torto, (arroz carreteiro como ovo frito), na qual os peões das fazendas se alimentam antes da lida no campo, chipa e sopa paraguaia, que remetem às tradições do Paraguai, que faz fronteira com nosso Estado, além de geleias, pão... queríamos um produto menos industrializado possível. Hoje, nossos produtos são produzidos por nós mesmos ou adquiridos por produtores locais. O objetivo é uma alimentação mais natural, mais orgânica, limpa e que gere renda à comunidade também”, explica o gestor.

Administrador trocou cidade para viver no campo há quatro meses (Foto: Marcos Maluf)
Administrador trocou cidade para viver no campo há quatro meses (Foto: Marcos Maluf)

Caetano não hesita ao explicar a proposta do comércio. Ele enfatiza que foco é reunir pessoas para dividir uma refeição, coisa que atualmente quem vive na cidade não faz por falta de tempo. Neste modelo, além do consumo em si, o intuito é proporcionar outros sentidos, resgatando a experiência ‘antiga’ de se alimentar melhor e a demanda por produtos artesanais é um atrativo.

“Estamos sempre de porteiras abertas para alimentar a alma, alimentar-se de cultura, por meio do resgate histórico do nosso estado. Muita gente mora aqui e não sabe o que é um quebra torto. É uma oportunidade de desmistificar também essa cultura do o que eu não consumo não é bom. É aproveitar esse momento para aproximas as pessoas, pois foram dois anos de pandemia e a gente aprendeu a dar valor nos pequenos detalhes, como se deitar em uma rede e ouvir o som da natureza”.

Atualmente, o sítio administrado por Carlos tem um plantel aproximadamente de 50 animais, mas no passado esse número foi maior. “Em decorrência da pandemia e redução do hábito de consumo tivemos que reduzir pela metade. Agora, com esse retorno ao normal acredito que retomaremos às atividades em sua força plena”, vislumbra o criador.

Pavimentando o futuro

“Temos aqui outro ponto turístico histórico, a Furnas do Dionísio, que é uma cultura muito linda da comunidade quilombola com resgate por meio de seus produtos como a rapa dura, queijo, farinha de mandioca”, indica Caetano.

Para chegar até a comunidade são apenas 11 quilômetros, a partir do distrito de Rochedinho, e o que tem deixado produtores e moradores esperançosos é a melhoria da infraestrutura na estrada. Há seis meses o trecho começou a ser pavimentado, o que facilitará o transporte de mercadorias e deslocamento para quem pretende visitar a região.

Outro aspecto que também anima a população são os investimentos e divulgação da produção local, como a Festa do Queijo, uma iniciativa de um antigo pároco, padre Alfeu, há cinco anos. “Quando tínhamos visitantes no distrito oferecíamos sempre a rapa dura de Furnas e o queijo de Rochedinho, como forma de agradecimento, pois a gente precisava de arrumar uma identidade para sermos reconhecidos”, lembra Calos, acrescentando que já na primeira edição passaram pelo evento mais de 3 mil pessoas, “o que deu um boom na festa”.


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