Dos mausoléus aos cemitérios-parque, busca por “paz” muda a estética da morte
Os projetos da última morada em um jardim fizeram muitos darem adeus à monumentalidade do mármore
Na manhã plena de sol e de luz de quinta-feira (31), as rebuscadas construções do Cemitério Santo Antônio, desde 1914 na Avenida da Consolação, Vila Santa Dorotheia, em Campo Grande, nos contam sobre a morte nos velhos tempos, quando quem tinha posses investia em esculturas e túmulos ricamente adornados.
RESUMO
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O Cemitério Santo Antônio, em Campo Grande, foi um local tradicional para sepultamentos, com túmulos ornamentados com esculturas e materiais como ferro, mármore e bronze. No entanto, o vandalismo tem se tornado um problema crescente, com roubos de peças de bronze e depredação de túmulos. O aumento da segurança é uma necessidade, mas a procura por cemitérios-parque, como o Jardim das Primaveras, inspirado no modelo do Cemitério Morumbi, em São Paulo, aumentou devido à estética mais tranquila e a falta de investimento na manutenção do Santo Antônio. O artigo destaca que o “bem morrer” e o gosto estético popularizaram os cemitérios-parque, enquanto os cemitérios tradicionais, como o Santo Antônio, perderam o seu apelo.
Hoje, quem pode pagar tem optado pela última morada em um cemitério-parque, disponível somente na modalidade particular em Campo Grande. O gramado avançou na preferência pela estética que evoca paz: um jardim com plaquinhas, ladeado por flores.
Público, o Santo Antônio tem 16.013 pessoas sepultadas. No local, as esculturas, de variados tamanhos, mostram faces constritas, como dos anjos, e dores, como a de Jesus levando a sua cruz. Nos materiais, muito ferro, mármore e bronze marcam a arte funerária.
Logo na entrada, Jesus Cristo caminha por um túmulo. O trabalho é do escultor Aldo Puccetti, de Campinas. O artigo “Monumento aos mortos da cidade de Campinas” menciona que Puccetti se destacou entre os marmoristas pela qualidade das obras.
A poucos passos, mais uma escultura, dessa vez sem assinatura, retrata Jesus Cristo. Jazigos avançam para o alto. Nos quatro cantos da construção, as pontas são adornadas com esculturas de anjos.
As cruzes têm arabescos, além de esculturas de santos. A escrita traz dores em português antigo. Como a do sepultamento em 1929, onde a placa mostra a saudade dos “paes”, na despedida do filho que morreu criança.
Os metais viram alvos de ladrões, que invadem o cemitério à noite e furtam as peças de bronze, como adornos e placas. Na ação, ainda depredam os túmulos, deixando rastros de estragos e tristeza para quem chega e vê o mausoléu vandalizado. Em 2021, foi levada uma escultura de Jesus Cristo de dois metros de altura, fabricada em 1963. A peça foi recuperada e voltou ao túmulo da família Razuk.
No túmulo do fundador de Campo Grande, o mini Obelisco, réplica do monumento que fica localizado na Rua José Antônio com a Avenida Afonso Pena, tem marcas dos furtos: onde havia placas metálicas com o nome e imagem de José Antônio Pereira, restou só o contorno.
“Aqui é um vandalismo, precisava subir esse muro e colocar cerca para que eles não entrem. Minha sogra está sepultada aqui. Levaram os vasos que tinham bronze para vender. Quebraram o vidro só por prazer. Mas nesse País, roubar é normal. Andar direito é que é o errado”, diz Maria Lúcia Fidélis Salomão, de 64 anos.
Três endereços – Primeiro, em 1872, o Cemitério Santo Antônio ficava em um ponto central do povoado, onde hoje é a Praça Ary Coelho. No ano de 1887, a comunidade decidiu transferir o cemitério para o Bairro Amambaí, no terreno onde hoje funciona o Sesi e a Casa da Indústria de Mato Grosso do Sul.
Entre os anos de 1913 e 1914, o Santo Antônio foi transferido para o atual endereço, que naquele tempo ainda era a Fazenda Bandeira.
Sobre a situação do Santo Antônio, Denise Lima de Oliveira, gerente de cemitérios públicos da Capital, afirma que serão analisadas propostas para aumentar a segurança. “Temos um planejamento para analisar ponto a ponto”.
Inspirado no Cemitério Morumbi – Em julho de 1973, Campo Grande viu a inauguração do Cemitério Jardim das Primaveras, o primeiro da cidade a ter o modelo de parque. A inspiração veio do Cemitério Morumbi, em São Paulo. Os projetos são da mesma família.
“Meu tio, irmão do meu pai, tinha ido para os Estados Unidos e visto que os cemitérios lá eram todos de grama, só tinha uma plaquinha identificando. Ele voltou para o Brasil achando a ideia maravilhosa”, conta Thereza Christina dos Santos Pereira Lopes.
Mesmo sem dinheiro para a construção, viajou à Itália para conversar com os donos do terreno onde hoje é o Cemitério Morumbi, em São Paulo. “Os donos do terreno se encantaram com o meu tio e entraram na sociedade. E ele fez o primeiro cemitério, o qual foi o Morumbi, inaugurado em 1969”.
O advogado José Augusto Lopes Sobrinho, pai de Thereza, veio para Campo Grande, onde morava a família de sua esposa, e decidiu fazer um cemitério-parque na cidade de apenas 80 mil habitantes. Na área de 10 hectares, manteve as árvores do Cerrado, que fazem sombra e atraem animais, como pássaros e saguis.
“Quando lançou o empreendimento, teve uma estrondosa venda. Foi um sucesso desde o dia que lançou. Muita gente prefere ser sepultada assim. Meu pai era um cara visionário. Ele manteve as árvores. Então, aqui é cheio de arara, tucano, macaquinhos. Cemitério com árvore foi o primeiro do Brasil. Porque o Morumbi não tem uma árvore. Do empreendimento de lá, ele foi tirando outras ideias”, diz Thereza.
Para ela, a estética de parque garantiu o sucesso do modelo. “Tem criança que chega aqui e nem entende que é um cemitério. Corre, quer subir em árvore, tem o lago com os peixinhos. A estética do cemitério é de muita paz. É muito mais tranquilo”, afirma.
A escolha de Maria – Maria Aparecida Guimarães Biscola, 72 anos, esteve no Cemitério Santo Antônio pela primeira vez em 1967 e até pensou em ter ali a sua última morada, mas acabou optando pelo Parque das Primaveras. Na última quinta-feira (31), a reportagem a encontrou no antigo cemitério público e, horas depois, no particular.
Com familiares sepultados no Santo Antônio, ela é mais uma a sofrer e ter prejuízo com o vandalismo.
“Roubaram tudo. Tinha cada escultura linda e estão roubando. Para arrancar os bronzes, quebram os túmulos. A gente chega e está tudo acabado. A tia do meu pai foi sepultada aqui e a gente tinha mandado fazer uma placa de bronze. Mas já quebraram tudo. Agora, mandei fazer de porcelana. Vamos ver se dura. Quem tinha aquelas esculturas lindas, não vai fazer mais. Por isso todo mundo hoje está partindo para esses parques. Eu queria um lugar aqui, um jazigo. Um dia eu pensei: mas só eu vou lá. Vou para um que é grama e pronto”, diz Maria. Há oito anos, ela comprou um espaço no cemitério-parque.
“Bem morrer” – Em “A cidade dos mortos: da monumentalidade do mármore aos cemitérios-parque na cidade de Campo Grande”, o pesquisador Fabio William de Souza destaca que a nova estética retira o ar macabro.
“O cemitério Santo Antônio em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, foi durante muito tempo considerado o local final para a morada das famílias mais abastadas, um cemitério com o padrão tradicional e considerado às vezes macabro. A inauguração dos cemitérios-parque traz uma transformação. Esses pouco, ou nada, possuem de macabro, pelo contrário, são em sua maioria belos parques”.
Conforme o artigo, o “bem morrer” e o gosto estético popularizam os cemitérios-parque e a substituição dos tradicionais que se utilizavam do mármore.
“A monumentalidade do mármore perdeu seu apelo com a chegada dos cemitérios-parque. Esta se fez presente no cemitério de Santo Antônio desde a década de 20 do século XX, e foi o modelo estético utilizado pela elite campo-grandense. O mármore não era mais necessário. A contratação de artistas e escultores deixou de existir. Arquitetos e engenheiros não fazem mais os projetos para a construção de túmulos e jazigos”.
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