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Arquitetura

Famílias ainda resistem em 10 casas históricas da Afonso Pena

No lugar onde quase tudo é centro comercial, imóveis antigos são raridades e comportam diversas histórias

Jéssica Fernandes | 02/03/2022 08:04
Endereço na Avenida Afonso Pena é o lar da Maria Idalina e a família. (Foto: Kísie Ainoã)
Endereço na Avenida Afonso Pena é o lar da Maria Idalina e a família. (Foto: Kísie Ainoã)

As histórias das famílias são semelhantes em alguns aspectos, porém divergem nos pequenos detalhes. A Avenida Afonso Pena é o elo de encontro, endereço em comum compartilhado por essas pessoas e ponto de partida de narrativas que vieram antes dos hotéis de luxo, farmácias e lojas chiques.

Em meio a diversos prédios comerciais, dez residências familiares resistem ao ruído do trânsito intenso, propostas de compradores e as mudanças paisagísticas. Entre batidas no portão e toques na campainha, somente seis moradores atenderam e aceitaram conceder entrevista ao Lado B.

Muito além de uma via pública que atravessa 7.8 quilômetros de Campo Grande, a Avenida Afonso Pena é o lar daqueles que chegaram e nunca sentiram vontade de partir. Boa localização, conforto, herança dos pais e memórias afetivas são algumas das razões que fizeram essas mulheres e homens serem os últimos a permanecerem.

Há 87 anos, residência resiste ao tempo e às mudanças no cenário da via. (Foto: Kísie Ainoã)
Há 87 anos, residência resiste ao tempo e às mudanças no cenário da via. (Foto: Kísie Ainoã)

Uma das casas mais antigas da Avenida Afonso Pena, datada de 1935, já apareceu no Lado B. Atualmente, Paulo Martin Bordenaruk, de 57 anos, é o único a morar no local, que um dia pertenceu à avó Isabel Chaparro Barbosa. Em 1965, primos e tios eram seus vizinhos, porém, com o tempo, os familiares procuraram outros endereços para residir.

Paulo acompanhou de perto cada transformação da avenida e ainda se lembra dos antigos cenários. “Ali onde é o banco, era um barzinho, na esquina, era mato e não tinha nada disso aí. Foi alugando, vai trocando, cada um vai seguindo e vai acabando”, diz.

O lugar sossegado, a grama onde brincava e as casas dos parentes foram substituídos pelo barulho dos automóveis, a ciclovia e os pontos comerciais. Ao recordar o passado, Paulo comenta que a avenida não apresentava os mesmos perigos de hoje. “Não tinha movimento, assalto, era bem mais tranquilo”, afirma.

Apesar dessas alterações, ele garante que gosta de morar na região devido à proximidade do Centro, o policiamento e o fato de ter crescido ali com os pais e irmãos. Como tudo na vida tem um preço, Paulo revela que não é pouco a quantia paga no  IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). “É caro morar aqui, o IPTU normal é de quase R$ 10 mil. Se você não tiver um bom emprego,  renda,  você não aguenta ficar, mas ainda assim, tem as vantagens”, conta.

No endereço, imóvel é habitado por três irmãos há mais de 50 anos. (Foto: Kísie Ainoã)
No endereço, imóvel é habitado por três irmãos há mais de 50 anos. (Foto: Kísie Ainoã)

No lado direito da residência do Paulo, vivem três irmãos que também chegaram há mais de cinquenta anos. Teresa de Arruda Barros, de 92 anos, é a proprietária de um dos três imóveis do terreno e, em razão da idade, é cuidada pela irmã Nadir Vieira, de 67 anos.

Nadir foi quem abriu o portão e contou que vive há tempo demais na Avenida Afonso Pena para lembrar da data com exatidão. Trazida de Bela Vista pela madrinha, Nadir era uma garotinha quando chegou na residência. “Eu vim morar com essa família aqui na casa do lado, ela era bem antiga no modelo da Pensão Pimentel”, recorda.

É com um sorriso no rosto que ela confessa adorar morar na região, onde não pensa em sair por nada nessa vida. “É bom morar na Afonso Pena, só que é muito barulhento. É bom porque é perto de tudo, tem farmácia, hospital, laboratório e banco”, comenta.

Casa familiar é uma das que estão à venda na avenida. (Foto: Kísie Ainoã)
Casa familiar é uma das que estão à venda na avenida. (Foto: Kísie Ainoã)

Embora tenha esses pontos favoráveis, ela relata sentir falta da vizinhança de antes. “Desde lá da esquina, era tudo casa de família e aqui era cheio de criançada. Como não tinha essa avenida, chegava tardezinha e todo mundo brincava na grama, porque não tinha construção”, conta.

A partir de 1990, conforme Nadir, os vizinhos começaram a sair das casas e a avenida foi ganhando o aspecto comercial e menos familiar. “O pessoal foi mudando. Penso que foram procurar casas maiores, porque a família vai crescendo e querendo ficar longe do Centro”, expõe.

O terreno onde vive, assim como ocorreu com as residências dos antigos vizinhos, também recebeu ofertas de compradores. Na época, a venda não foi realizada e agora, Nadir não pensa em mudar de endereço com a irmã. “Aqui já foi cogitado vender há muitos anos, mas não deu certo. Agora, não tem por que tirar minha irmã daqui nessa altura da vida”, ressalta.

Na Avenida, casa divide estrutura com ponto comercial. (Foto: Kísie Ainoã)
Na Avenida, casa divide estrutura com ponto comercial. (Foto: Kísie Ainoã)

Em 1950, a casa dos pais da Maria José, de 68 anos, ficou pronta para comportar toda a família. No local, José, de 92 anos, e Luiza, de 90 anos, criaram os cinco filhos e viveram incontáveis histórias. No ano passado, um deles faleceu e, atualmente, o casal vive na companhia de uma das filhas.

Apesar de não morar mais na Avenida Afonso Pena, Maria passa bastante tempo no imóvel, pois ajuda a irmã a cuidar dos pais. Embora goste do lugar, ela não esconde a preocupação que sente com a segurança na região. “A gente fica preocupado, porque já teve ladrão que pulou para cá. Semana passada, a minha prima veio visitar meus pais e um ladrão de bicicleta a derrubou. Eram nove horas da manhã”, frisa.

Por apreciarem muito a localização, os pais dela nunca pensaram em vender a área e olha que proposta boa não faltou. “Quando construíram esse hotel, eles quiseram comprar aqui para ampliar, mas meu pai nunca quis, ele sempre gostou daqui”, afirma.

Pela aparência simples, imóvel da Wilma recebeu oferta de apenas R$ 150 mil. (Foto: Kísie Ainoã)
Pela aparência simples, imóvel da Wilma recebeu oferta de apenas R$ 150 mil. (Foto: Kísie Ainoã)

Wilma Leda Brandão Pereira, de 72 anos, tinha somente dois anos quando chegou na residência onde continua morando. Mesmo simples, a casa tem um valor importante para ela, que diz amar os barulhos da cidade. “Eu não suporto o silêncio, é uma solidão, todo mundo reclama do barulho, mas eu adoro”, ri.

Outro assunto que faz Wilma dar risadas são as ofertas mirabolantes que já fizeram para adquirir o imóvel. “O pessoal chega, vê minha casa meio feinha e acha que tô na pior. Outro dia, chegou um cara aqui e me ofereceu R$ 150 mil em dinheiro, comecei a rir”, expõe.

Na visão dela, o lado bom de sempre ter morado no mesmo lugar foi poder acompanhar o desenvolvimento da avenida. “É uma coisa boa no sentido de você ver o progresso, quando eu era pequena, aqui não passava carro. Para você ir ao Centro, você tinha que subir até a esquina do Hotel Exceler, pegar o ônibus, que depois descia pela Cândido Mariano”, lembra.

Há dez anos, casa amarela é o lar de Douglas e os pais. (Foto: Kísie Ainoã)
Há dez anos, casa amarela é o lar de Douglas e os pais. (Foto: Kísie Ainoã)

Diferente da maioria dos vizinhos, Douglas Missa, de 38 anos, não tem a Avenida Afonso Pena como endereço fixo há tanto tempo. "Faz dez anos que estamos aqui”, explica. Nesse período, Douglas diz que poucas coisas mudaram, porém, recentemente, o número de furtos na região aumentou.

Embora fique preocupado, ele garante que acha vantajoso morar no lugar. “Aqui fica a cinco minutos de tudo”, afirma. Sem planos para realizarem qualquer mudança, a casa amarela com uma árvore no jardim é o lar permanente dele e dos pais.

Descendo a Avenida Afonso Pena, sentido Centro, Maria Idalina Martins Resstel, de 68 anos, vive com o marido, a mãe e dois sobrinhos. No endereço, ela chegou quando tinha 15 anos e, como tudo era perto, aproveitou a fase boa da adolescência. “Para mim, foi super ótimo, porque você se locomovia rapidão por ser tudo pertinho. Antigamente, era bem seguro, não é igual hoje que você precisa fechar tudo, mas graças a Deus, nunca aconteceu nada aqui em casa”, ressalta.

Na avenida, casas são poucas entre os prédios comerciais. (Foto: Paulo Francis)
Na avenida, casas são poucas entre os prédios comerciais. (Foto: Paulo Francis)

Ela revela que viveu em vários lugares, mas há dez anos, voltou para a casa onde os pais a criaram. “Minha mãe ficou viúva, meu irmão que morava com ela faleceu. Eu tinha um apartamento, fechei ele e voltei para cá. É gostoso morar aqui, porque tem tudo as coisas que conhecia desde criança”, relata.

Há alguns anos, a avó de Maria morava na residência ao lado, que hoje, cede espaço a uma loja. É em poucas palavras que Maria resume a essência da Avenida Afonso Pena. “Minha vó morava aqui, morreu, vendemos a casa e virou comércio, tudo vai virando comércio”, conclui.

Na Avenida Afonso Pena, onde é difícil encontrar um lugar que seja sinônimo de lar, não faltam lojas de roupas, salões, restaurantes, postos de gasolina, bancos, academias, farmácias e hotéis. Por ora, as casas de diferentes tamanhos, cores, estruturas e idades seguem abrigando essas famílias. No lugar onde “tudo vai virando comércio”, resta saber se é questão de tempo para essas residências terem o mesmo destino.

Casa dos pais de Maria José foi construída em 1950. (Foto: Paulo Francis)
Casa dos pais de Maria José foi construída em 1950. (Foto: Paulo Francis)

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