No Santo Amaro, casa de boneca tem tudo a altura dos olhos de casal sobre rodas
Há sete anos, a casa no bairro Santo Amaro, em Campo Grande, veio abaixo numa reforma para fazer com que desde o rebaixamento da calçada desejasse boas vindas aos novos moradores. Casados há uma década, a história de Nelson e Mirella transforma o lugar onde moram em casa de boneca e não só pelas miudezas que se encontram no caminho.
Para fazer uma casa adaptada precisa o que? Primeiro, dinheiro, garante o casal. Cadeirantes, ele por conta da poliomielite e ela pela doença popularmente conhecida como "ossos de cristal", em 2009 o casal trocou a vida no apartamento na área central pela possibilidade de ter jardim, passarinhos e um joguinho de mesa e cadeiras de ferro na varanda.
"A casa estava bastante judiada, mas a gente tem um olhar como raio-x. De bater o olho e já planejar: vamos ter que baixar a janela, mudar portas", enumera o funcionário público Nelson Tosta, de 55 anos.
Foram três reformas ao longo dos anos. A começar pelo número da casa 1007 e também pela caixinha de correio, onde uma criança pode recolher as correspondências.
"A gente não acha uma casa adaptada, é praticamente impossível um imóvel apropriado para as necessidades dos cadeirantes. Um exemplo: a casa precisa ter o nível igual ao da rua, não tem que ter degrau nem para entrar ou sair e nem dentro", explica Nelson.
A adaptação da rua foi deixar a calçada no mesmo nível da via, quando geralmente se tem uma diferença entre 5 e 8 centímetros.
Por dentro, as janelas precisam estar à altura dos olhos e dentro das medidas consideradas "comuns", a estrutura impede o casal de explorar o 'lá fora'. Só neste ponto, são pelo menos 40 centímetros que fazem uma grande diferença.
Os interruptores estão à mão e na sala, a mesa de madeira teve de ser serrada. O móvel que serve de apoio para a televisão é relíquia de família de Mirella.
"Era da minha avó, uma escrivaninha que tinha quatro pés de madeira bem alto, mas apodreceu, então mandei fazer de ferro, mais baixo e pintei de laranja", descreve a presidente da Associação de Mulheres com Deficiência de Campo Grande, Mirella Ballatore Tosta, de 52 anos. É da internet e revistas de decoração que ela tira boas ideias.
Na última obra feita, metade da área de serviço foi transformada em cozinha, para dar mais liberdade aos movimentos do casal e abrigar a família toda ao redor de um almoço de sábado.
Pela cozinha, lavanderia e banheiro serem os lugares onde o casal encontra mais dificuldade, era justamente o que tirava o sono durante à noite. "Tudo o que você vê é ideia nossa, às vezes a gente acordava de noite e falava: vamos fazer isso? E daí já levantava", contam.
Abaixo da pia, não há armários, algo tão comum ao nosso dia a dia. Mas é justamente para dar mobilidade na hora de escovar os dentes e lavar as mãos. Ali a cadeira entra enquanto Nelson ou Mirella se olham no espelho.
"Pode ver que não tem armário embaixo de nada e tudo o que eu faço, é de rodinha", aponta Mirella. "Senão, como você vai entrar?" pergunta. A cozinha ficou a cargo da dona da casa, os armários - quando presentes - não têm os pezinhos. E é um pequeno, de rodinhas, que deixa à mão todos os pratos.
Na parede de ladrilho hidráulico, as prateleiras são resultado da "arte" de Mirella. "Eu mexo com furadeira, parafuso... Aí tive a ideia de colocar. Subi na pia, o Nelson segurou minha cadeira e eu furei", narra.
A dificuldade ali está na hora de pensar em congelar alimentos. Até hoje o casal não conseguiu encontrar uma forma de ter freezer em casa. O horizontal faria com que eles tivessem de se debruçar para retirar ou deixar alguma coisa. Já os de cima, junto com a geladeira, não fica ao alcance.
O que não se usa diariamente, Mirella deixa nas prateleiras acima. Isso vale tanto para a cozinha quanto para o quarto. O guarda-roupa tem tudo baixinho, como gavetas e roupas penduradas. "É uma coisa que combina com a outra: baixinho porque as roupas são pequenininhas", brinca Nelson.
O banheiro é o espaço mais gracioso por se parecer justamente com uma casinha de boneca. Espelho à altura dos olhos, e vaso feito 'direto' no piso, numa bancada. Ao lado, é ali que a água do chuveiro escorre para o banho. Secador, maquiagem, tudo pertinho e em 'miniatura'.
Na hora da reforma é preciso que um dos dois estejam atentos o tempo todo. A mão de obra não é das mais fáceis de se encontrar e muitas vezes os donos precisam teimar. "Eles falam que não é no padrão da altura, mas não tem que ser no padrão dele e sim no meu", exemplifica Mirella.
Se a casa é a cara do casal? Disso ninguém duvida, não só pela acessibilidade. "O que deixa uma casa a cara da gente é a harmonia na vida das pessoas que moram nela", resume ela. Quem visita Nelson e Mirella é que coloca o apelido carinhoso de casa de boneca.
"Tudo aqui é pensado e a casa é de boneca, porque ela é uma", declara Nelson à esposa.