Em debate sobre censura, artistas veem ditadura presente e defendem resistência
Audiência pública da Assembleia Legislativa apontou 'tempos obscuros' na democracia, teve intervenção de corpo nu e artistas vão mobilizar ações
'Temos que acabar com a arte degenerada'. É o que bradava parte da população européia nos anos que precederam a segunda guerra mundial. É temendo que a mesma época dura, de totalitarismo no Estado e intolerância no diálogo já tenha batido à porta do Brasil, que políticos, artistas, estudantes e sociedade civil discutiram o papel da Arte e as tentativas de cerceá-lo em audiência pública da Assembleia legislativa de Mato Grosso do Sul, que ocorreu em Campo Grande, na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) na tarde desta quinta-feira (5).
A discussão foi provocada por professores do curso de Artes Visuais da UFMS, que procuraram o deputado Pedro Kemp (PT). Além do parlamentar, compuseram a mesa os professores do curso de Artes Visuais ds UFMS, Paulo Duarte Paes e Gilberto Luiz Alves, a representante do Fórum Estadual de Cultura, Fernanda Teixeira, o advogado Marcelo Barbosa Martins, o artista e representante da Rede Brasileira de Teatro de Rua, Fernando Cruz e o vereador Eduardo Romero (Rede).
Artifício eleitoreiro
Para os integrantes da mesa de discussão, as peças que ganham as redes sociais descoladas das exposições das quais fazem parte, e criticadas por grupos como o MLB (Movimento Brasil Libre), são utilizadas como "artifício eleitoreiro".
"Eu acho que eles deveriam se preocupar mais com a fome das crianças, com a desnutrição, bombardeio da erotização, da iniciação sexual cada vez mais precoce, da gravidez na adolescência, doença sexual. Essas questões deveriam preocupar os agentes públicos", comentou Kemp. Para o deputado, além disso, o momento indica que a crise se manifesta em todos os aspectos do cotidiano e pede tolerância nas discussões.
"É uma questão de uma hipocrisia. A gente vê notícias de crianças sendo estupradas, crianças sendo violentadas, dentro da família, por padrastos, tios. E o que essas pessoas estão fazendo?", criticou a professora de artes Vera Penzo.
"É um artifício eleitoreiro. Evidente que a mensagem não é de incitação à pedofilia como disseram os deputados", criticou o professor Gilberto, em alusão ao quadro retirado do Marco (Museu de arte contemporânea de Mato Grosso do Sul), parte da exposição Cadafalso, da artista mineira Ropre.
Única mulher da mesa de discussão, a representante do Fórum de cultura, Fernanda Teixeira, criticou os deputados estaduais que pediram intervenção policial contra a exposição. "Nunca vi os deputados em nenhum espaço de defesa das crianças e adolescentes. Nunca se preocuparam com os direitos humanos. Em nenhum momento a gente vê essa pauta entrar na Assembleia. A gente não vê esses deputados usarem a tribuna para falar da violência contra a mulher", afirmou.
Censura já chegou
A representante do Fórum de Cultura também relatou que a 'censura' chegou, invisível, há anos. Ela comentou sobre os cortes e programas em editais, segundo ela impeditivos que os trabalhos artísticos cheguem até a população de modo geral, criando ainda mais distância entre a arte e a sociedade.
"Já tem um tempo que parte da população não acessa mais as coisas. Para onde esse dinheiro vai? Para quem ele serve?", provocou.
Professor do curso de artes, Paulo César comentou sobre uma censura para ele ainda mais invisível: a transformação das pessoas em máquinas, desgastadas pelo dia-a-dia, e a perda da sensibilidade para compreender a arte.
"A arte faz parte de uma universalidade muito maior do que essa. A dor do real também faz parte da arte. E fazemos isso porque somos ligados ao mundo de uma forma sensível e permanente", declarou. Ainda assim, a chegada despercebida de tempos "mais duros" foi denunciado por àqueles que produzem uma arte marginalizada dentro da própria arte.
É o que relataram malabaristas, atores e outros artistas que não utilizam dos museus para expressarem-se, e sim, da rua, de onde, agora, estão impedidos de estarem, em diversas cidades, à exemplo de uma malabarista de Presidente Prudente. Ela relatou que os artistas populares não mobilizam discussões como os 'aristas de museu'.
Foi o que também pontuou o representante da rede brasileira de teatro de rua, que articula mais de 200 grupos de teatro. "O que está acontecendo nesse momento no país faz parte de um projeto que já está acontecendo faz tempo", declarou Fernando Cruz.
No momento em que falava, dois pixadores entraram na sala e penduraram seu manifesto em uma caixa de som, em defesa da arte de rua. Certo desconforto da plateia ao lidar com os pixadores mostra que as certezas sobre o que é a arte e quem pode reivindicá-la estão longe de serem alcançadas.
Meu corpo não é crime
No final da discussão, uma estudante de filosofia pediu a palavra. Ela contou como a volta para a Universidade, aos 50 anos, trouxe entendimento da necessidade de mais reflexão na sociedade. Foi a própria universidade, no entanto, que a chocou ao impedir a entrada de uma colega transgênero, negra e moradora de um bairro periférico, no campus. Ela declarou que os guardas proibiram a entrada da colega na UFMS.
Ao falar sobre a "criminalização do corpo", sobre o câncer que enfrenta e o episódio sofrido pela amiga, a estudante levantou a blusa e mostrou os seios. O nu que choca as certezas morais de parte da sociedade, no entanto, não provocou reações agressivas na sala onde ocorria a audiência. "O corpo não é um crime", resumiu, depois, à reportagem.
A audiência foi transmitida ao vivo pela TV Assembleia. O espaço também colheu assinaturas para uma representação coletiva na Corregedoria da Polícia Civil, que será movida contra o delegado Fábio Sampaio, da Depca (Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente), responsável pela apreensão da obra no Marco.
Ao final, o encaminhamento mais significativo foi provocado por uma estudante de artes. O 'tempo' para perguntas já tinha chegado ao fim, mas não impediu que ela conseguisse levar boa parte das pessoas para o lado de fora da sala. Ali, estudantes e artistas preparam ações para resistir. O que será feito e os resultados para os 'tempos duros', ainda ficam sem resposta.