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Artes

Estreia como diretora faz Áurea refletir sobre arte e meio ambiente

Espetáculo "Tamboril Estelar" teve cenário todo feito com lixo recliclado higienizado pela equipe

Bárbara Cavalcanti | 19/12/2021 10:03
Imagem de cena do espetáculo Tamboril Estelar. (Foto: Raique Moura)
Imagem de cena do espetáculo Tamboril Estelar. (Foto: Raique Moura)

Áurea Novaes Silva Santos, de 26 anos, é conhecida como “Áurea Eu”. Uma de suas criações é o Desordem Lab, espaço de criação artística com práticas sustentáveis. A história das ecobags e camisetas feitas no local, já apareceu aqui no Lado B, mas agora, Áurea experimentou com outra vertente: a direção cênica.

O espetáculo “Tamborim Estelar” estreou no mês passado em Dourados, município distante 229 quilômetros de Campo Grande. Áurea assinou a direção e pela primeira vez, teve a experiência de estar na função. Ela também fez o figurino, mas essa é uma das áreas com a qual ela já atua.

A peça traz um cenário todo feito com lixo descartável. A personagem Katarina está como que perdida no espaço, o que a leva a várias reflexões. Tudo foi feito com baixo orçamento e durante a pandemia.

Durante o processo de produção e execução da peça, Áurea, em sua vida particular, também passou a refletir sobre fazer arte, relações sociais e sustentabilidade. Na jovem idade, a primeira experiência com o tamanho da responsabilidade de produzir e dirigir um espetáculo, deixou um impacto. Essa vivência, ela compartilha no Voz da Experiência.

“Quem trabalha com arte sabe do que eu estou falando. É resistência atrás de resistência. E a gente tem vivido um momento de muitas incertezas do amanhã. Apesar de eu ter desaprendido muito sobre a socialização durante este confinamento, reaprendi muito nesse processo de montagem. E ainda tenho muito o que aprender, não apenas como diretora, mas também da vida, das relações pessoais e profissionais. 

A gente aprende a ver tudo de uma maneira muito romantizada quando se trata de produção teatral. Por falta de conhecimento deste universo, muita gente acha que é tudo muito divertido – e não é. É tudo muito trabalhoso e que pode até ter, eventualmente, alguns momentos de diversão, mas na maior parte do tempo a gente lida com muita seriedade e preocupação com o processo de criação, afinal a criação não vem sem propósito. 

Áurea Eu maquiando atriz Natallia Mazarim antes de entrar em cena. (Foto: Raique Moura)
Áurea Eu maquiando atriz Natallia Mazarim antes de entrar em cena. (Foto: Raique Moura)

Natallia Mazarim [atriz e produtora executiva] e eu ficamos em processo desde o início do ano. Seguindo cronograma. Lidando com um orçamento apertado dentro de uma planilha inflacionada que não comportava mais nosso ideal de 2019. E mesmo assim demos o nosso melhor, aumentando encontros ao longo dos meses e fechando os últimos dois meses antes da estreia com ensaios de segunda a segunda. Não houve descanso para nenhuma de nós. E depois da estreia, continuamos cansadas. 

E o cansaço maior está em ter que lidar diariamente com a desvalorização de nossos trabalhos como artistas. E olha que, de certa forma, ainda vivemos circunscritas em algum privilégio dentro de nossa classe. 

Com o Desordem LAB fizemos o possível para reaproveitar recursos e termos uma produção de baixo ou nenhum impacto ambiental negativo, e ainda trazer a luz da consciência de nossa plateia reflexões acerca do sistema que temos representado.

E nem sempre a melhor escolha, a escolha consciente é a mais barata. O que não se faz com recursos materiais, se faz com recursos humanos. Lavamos lixo para nosso cenário. Catamos e selecionamos lixo catado e selecionado por catadoras e catadores de lixo reciclado. E era tanto lixo e do lixo levantamos nossa obra. Obra coletiva, no plural. Muitas mãos. 

Equipe higienizando o lixo reciclável. (Foto: Arquivo Desordem Lab)
Equipe higienizando o lixo reciclável. (Foto: Arquivo Desordem Lab)

No lixo podemos ver muito de nós, humanas e humanos. Como lidamos com as coisas, com a vida. Foram incontáveis as embalagens de shampoo descartadas sem terem sido finalizadas. Cremes de corpo de marca de laboratórios estrangeiros com quase metade do produto dentro. Produtos de limpeza?! Nem se fala! Amaciantes de roupas?! Nossa! Parecia uma maratona, uma competição de quem descarta mais. 

E eu preciso dizer que, de uma certa forma, me senti encurralada. Enquanto selecionava o material que iria para cena me deparava com produtos familiares. Uma cena triste saber que talvez duas, ou três, ou a maior parte das embalagens que estavam ali poderiam ter saído da minha casa. “Então esse é o fim sem fim da indústria do descarte”, me indaguei, enquanto me sentia aborrecida por fazer parte disso.  

Quem faz teatro, arte, com propósito, não consegue passar um processo sem ser atravessado por ele. Tamboril Estelar me colocou de frente para uma causa que eu já venho há alguns anos me proposto a lidar e validar minha existência. Eu estou muito contente em minha primeira direção ter abordado questões tão profundas humanas e que retratam nossas dificuldades em lidar com o que precisa ser lidado. 

Cena do espetáculo Tamboril Estelar. (Foto: Raique Moura)
Cena do espetáculo Tamboril Estelar. (Foto: Raique Moura)

Apesar de todas as intempéries com o se fazer arte que tenho lidado já há algum tempo, principalmente aqui no interior, eu preciso registrar que minha luta como artista apenas começou e eu não penso em baixar minha guarda tão cedo. 

Katarina, de Tamboril Estelar, pode até ter se tornado passado e ter desaparecido na órbita do esquecimento. Mas eu pretendo continuar nesta jornada firme e forte e convido você para estar junto comigo também.  Tenho aprendido muito e quero poder compartilhar ao máximo tudo o que eu puder. E o que eu espero disso? Que vocês sejam, pelo menos, tocados. Esse é o meu papel como artista. Toc-toc! Posso entrar?

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