“Vê se te enxerga” é projeto que ajuda meninas da periferia a se reconhecerem
Com racismo, violência, depressão e anorexia, poucas meninas estão confortáveis em se descreverem como “bonitas”
Kimbherlly Cruz tinha 13 anos, quando sofreu racismo dentro da escola por um professor de Educação Física que a colocou de costas para o quadro e a ofendeu com gestos e palavras racistas. Aos 15, ela perdeu totalmente a vontade de se olhar no espelho e tentou diversas vezes embranquecer a própria pele.
Em 2019, o racismo seguia causando dano, e ela detonou o próprio cabelo. “E foi aí que eu não me aceitava mais”. Por meses, ela não conseguia sair de casa sem uma base mais clara que a cor da pele. No salão de beleza ou em casa, fez diversos procedimentos para alisar os cachos.
“Eu era acostumada com os colegas me zoando pela cor da minha pele. Mas quando isso veio de um professor, eu não consegui me expressar mais. Eu sabia o que as pessoas falavam de mim, mas não sabia quem eu realmente era. Foi quando conheci o projeto ‘Vê Se Te Enxerga’, que foi uma verdadeira tapa na minha cara, no bom sentido”, lembra.
‘Vê Se Te Enxerga’ é um projeto novo, criado em abril deste ano, para recuperar a autoestima de meninas da periferia em situações de risco e vulnerabilidade sociais. O projeto é idealizado e executado pelas profissionais de Serviço Social e Psicologia do Centro de Referência Social Albino Coimbra Filho, no Jardim Aeroporto, que pertence a Secretaria de Assistência Social.
Um projeto que além de abordar temas relacionados às diversas situações de risco que elas enfrentam na adolescência, também busca identificar e desenvolver as potencialidades de cada uma. Conquistando protagonismo, autoconfiança, fortalecimento dos vínculos familiares, acesso aos direitos e prevenção de novas situações de risco.
Com o trabalho, a psicóloga Paula Santos e a assistente social Junia Alves incentivam as meninas a compartilharem seus problemas e histórias de vida, usando exercícios e ferramentas que fortaleçam o diálogo e a confiança entre elas.
Principalmente porque poucas meninas estão confortáveis em se descreverem como “bonitas”. O desconforto aumenta quando são questionadas sobre padrões. A psicóloga acredita que mostrar às meninas as boas possibilidades da vida é o início de um trabalho de empoderamento, um processo que deve partir do diálogo.
Para lidar com essas cobranças que afetam principalmente as meninas da periferia, Junia, entende que o melhor a ser feito é desenvolver a autoestima o quanto antes. “O projeto começou há sete meses e já temos ótimos resultados, com transformações na vida dessas meninas, isso mostra que o quanto antes trabalhar essas questões com elas, será melhor”.
Giovana Martins, de 17 anos, chegou ao grupo com diagnóstico de anorexia e precisava de apoio para enfrentar a doença. Com atividades do projeto, começou a olhar o corpo aos poucos. Mudou o sentimento. Começou a voltar comer.
“No começo do projeto eu não me aceitava do jeito que eu era. Deixava todo mundo decidir como eu era. Eu não conseguia me olhar no espelho. Na minha cabeça eu estava gorda e tinha que ser igual a minha irmã que sempre foi magra”.
Com a doença ela chegou a perder muitos quilos em uma semana. “Eu não comia em casa, não comia na escola, depois disso me deu a depressão e me perdi de mim”.
No grupo ela encontrou uma atividade que a fez se encarar pela 1ª vez. “Era uma caixa com espelho. E quando eu me olhei eu não sabia quem eu era. Chorei muito por isso. A maioria das meninas chorou. A partir daquele momento eu busquei saber quem eu era”.
Letícia Guedes, de 14 anos, tinha recém chegado a Campo Grande, em abril, quando soube do projeto. O pai sugeriu que a filha deveria participar. “Então eu vim só pelo nome que achei curioso”, diz Letícia.
O grupo também ajudou em um momento difícil. Desde pequena, Letícia era uma menina retraída, sentia-se insegura em falar com as pessoas. “Eu falava baixinho, quase sussurrando, era um jeito de me sentir invisível e ninguém precisar falar comigo”.
Quando começou o projeto ela diz que gostou logo de cara. “Consegui fazer amizades e aprendi que eu tinha que falar para as pessoas me escutarem. No projeto aprendi muita coisa, senti que foi um curso preparatório para vida e para o meu primeiro emprego. Nunca imaginei que ia aprender isso”.
Fabiele Evelyn Mendes Vargas, de 15 anos, foi uma das que entrou para o grupo com sintomas de depressão. A família não sabia do que acontecia. Na frente dos amigos sorria e sozinha chorava.
“No começo do projeto eu vinha porque achei interessante, mas com a depressão eu comecei a faltar. Eu falava para minha mãe que vinha, mas ficava escondida atrás do prédio”, lembra.
Ela também embarcou nas armadilhas que afetam meninas quando o assunto é autoestima. “Colegas da escola faziam bullying comigo”, lembra. “E era muito mais gordinha. Mas bullying me afetava tanto que eu procurava na internet mil maneiras de emagrecer e eu comia algodão para ver se eu conseguia parar de engordar”.
Fabiele se sente transformada, assim como Kimbherlly, Giovana e Letícia. As meninas recuperaram autoestima e aprendeu muito sobre autoconfiança, mercado de trabalho e relações pessoais.
Recentemente, elas participaram da formatura do projeto. Familiares ouviram depoimentos das meninas que hoje deixam o projeto com sentimento de liberdade. “Agora eu posto a foto que quiser”, diz Giovana. “Eu falo pelos cotovelos e não me importo”, sorri Letícia. “Não tenho vergonha de usar a roupa que me faz bem”, diz Fabiele. “E agora solto o meu cabelo sem medo”, comemora Kimbherlly.
Para a psicóloga e assistente social, os depoimentos e sorrisos das meninas são motivos para dar continuidade ao projeto. “Para nós é muito gratificante ouvir delas sobre o sentido de transformação. Mas gratificante ainda é ver que os laços familiares foram restabelecidos e a própria família entendeu o que acontecia com elas. Isso é muito importante”, descreve a assistente social.
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