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Comportamento

Aline inaugurou "bolo" em chamada de vídeo após levar furo de amiga

Na própria casa, quando todo mundo vive grudado no celular, qual é a desculpa para furar uma vídeochamada?

Paula Maciulevicius Brasil | 17/06/2020 07:39
Postagem de Aline, à espera da amiga para a vídeochamada. (Foto: Arquivo Pessoal)
Postagem de Aline, à espera da amiga para a vídeochamada. (Foto: Arquivo Pessoal)

Foi com a pergunta: "alguém ja levou bolo em vídeochamada?" que a jornalista Aline Lira, de 31 anos, postou a foto de uma taça vazia, de quem esperava do outro lado do telefone a voz e a imagem da amiga, para então, juntas, beberem um vinho. O fato aconteceu algumas semanas atrás, quando o frio deu as caras na Capital.

Na brincadeira, Aline disse ter sido a primeira a inaugurar esse tipo de bolo, mencionado o tempo atual de "Modernidade Líquida". O termo do pensador Zygmunt Bauman, não faz referência à bebida não compartilhada pelas amigas no encontro furado, mas se relaciona com a fluidez que marca as relações sociais da atualidade, marcadamente frágeis e, por isso, efêmeras.

Bauman ganhou o pessoal de Humanas, mundo afora, ao descrever a realidade da virada de século a partir da contraposição entre o "sólido" de antigamente e o "líquido" de hoje. Antes, as relações eram numericamente poucas, mas duradouras e profundas. Hoje, impera uma dinamicidade na vida que leva as pessoas a se relacionarem cada vez mais em números, mas menos em duração e profundidade. É o que acaba acontecendo, em geral, nas interações via redes sociais e aplicativos de relacionamentos. Essas ideias saem dos livros e ganham a realidade na situação das amigas.

"A modernidade líquida fala das relações nesse sentido fluido, líquido, fugaz, na qual as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis e maleáveis. Apesar da minha amizade ser algo concreta, me vi tendo que alimentar os laços mais do que nunca pelas redes sociais", avalia Aline.

A história toda começou com um convite para o encontro presencial. As duas estão em quarentena e, de início, Aline confessa que ficou tentada em aceitar o convite, mas a consciência pesou. "Fazer isso é ir contra o que acredito, acompanho os noticiários, e acho falta de empatia com as pessoas falecidas", conta. Então, partiu dela a proposta de tomarem um vinho juntas, por vídeochamada, mas cada uma em sua casa.

"Combinamos, e eu fiquei esperando em casa à noite, doida para tomar meu vinho. Mandei mensagem, e ela disse que não estava muito afim, acabou desistindo da vídeochamada. Resolvi levar na esportiva, já estava com meu vinho, vou tomar", recorda.

A postagem foi uma brincadeira e, ao mesmo tempo, mostrou que Aline não era a única. "Conversando com amigos, percebi que isso é bem corriqueiro, postei tirando onda de que eu quera ser pioneira... Mas em alguns casos, você acaba vendo a frequência mesmo, se a pessoa dá bolo na vida real, acaba dando bolo no virtual", fala a jornalista.

No caso da amiga, houve um motivo nobre. Foi uma chateação por conta de um desentendimento que ela havia tido com uma pessoa que conheceu já na quarentena, por meio de aplicativos. "Eu sou avessa aos aplicativos de relacionamento, nunca entrei em um e me recuso, mas não condeno. Mas me ver tendo que usar as redes, a vídeochamada e tomar um bolo virtual da minha amiga e ao mesmo tempo dar conselhos para ela que estava chateada por um namoro de aplicativo, me fez ver totalmente essa teoria de Bauman".

Aline e o amigo João Pedro, num dos rolês que ela organizou antes da pandemia. (Foto: Arquivo Pessoal)
Aline e o amigo João Pedro, num dos rolês que ela organizou antes da pandemia. (Foto: Arquivo Pessoal)

A pandemia tem feito a jornalista refletir sobre a liquidez dos dias atuais - que até parecem intensificar esse processo -, quando na verdade, tudo o que ela queria era estar, pessoalmente, com os amigos. "Sou dessas de curtir reunir, das que encabeça o rolê, uma reuniãozinha da turma e estou sentindo um bocado agora, quando o contato social e os relacionamentos foram banalizados, sendo intermediados pelos aparelhos de celular, internet, como é na teoria de Bauman", explica.

Se, antes, havia quem se incomodasse quando todo mundo estava na mesa de bar agarrado ao celular, agora os eletrônicos se tornaram a única alternativa para quem segue a quarentena. "O jogo meio que virou, né?", brinca Aline.

Doutor em Psicologia, Gillianno Mazzetto faz um comentário muito pertinente e, entre filósofos e linhas de pensamento, apresenta uma avaliação que faz a gente refletir depois de vivermos já há algum tempo no isolamento social. "Ao meu ver, as pessoas já começam a demonstrar sinal de cansaço diante dessa situação pandêmica. E uma segunda coisa: quando estamos perto fisicamente das outras pessoas temos liberação ou estímulo de um hormônio chamado ocitocina que contribui com a sensação de bem-estar. O distanciamento e as interações virtuais não produzem ocitocina, por isso que muitas pessoas, ainda que conversando por vídeo, querem se ver, porque elas percebem que falta alguma coisa".

Sobre a Aline, a noite e o bolo, acabou que ela e a amiga tomaram vinho, a distância, conversando pelo WhatsApp, mas por mensagens mesmo e não por vídeochamada. O vinho, segundo a jornalista, também se foi. E as ideias de Bauman continuam a nos fazer refletir.

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