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Comportamento

André fica desesperado com despejo após “engraxar” história de MS

Centro de Campo Grande entra no século XXI com calçadão moderno, mas ordem para “alguns saírem” pode tirar parte da história

Izabela Sanchez | 27/11/2019 14:20
O jovem André eternizado engraxando os sapatos do ex-prefeito Lúdio Coelho em Campo Grande pelas lentes de Roberto Higa no final da década de 1980.
O jovem André eternizado engraxando os sapatos do ex-prefeito Lúdio Coelho em Campo Grande pelas lentes de Roberto Higa no final da década de 1980.

Os ventos do século XXI sopram fortes na manhã de quarta-feira (27), a dois dias da tão sonhada inauguração “da nova Rua 14 de Julho”. É, para Campo Grande, um dos símbolos de que a cidade pisou os dois pés na modernidade, mas que escolheu para isso valorizar região onde vive ainda, o passado, onde guardam-se histórias.

O século XXI que varre a poeira com o vento, recado de que a chuva vem com força na manhã cinzenta, varre também as certezas. André Luiz Ferreira, 53 é de outro tempo. Vem de uma época em que profissões eram ofícios. Integra um dos poucos que ainda restam no mundo onde humano e máquina confundem-se. É engraxate.

Esse ofício de lustrar sapatos que calçam pés que pisam com importância surgiu, ao que tudo indica, com a própria modernidade, no final do século XIX, marca do relógio que corria mais rápido e fazia com que o homem de negócios precisasse, entre a folheada de jornal e um bate papo rápido com os amigos, deixar o couro dos calçados brilhando.

André na versão 2019 da Rua Barão do Rio Branco (Foto: Marcos Maluf)
André na versão 2019 da Rua Barão do Rio Branco (Foto: Marcos Maluf)

André não fala como falam a maioria das pessoas, mas diz muito. Fala com a língua brasileira de sinais, mas foi engraxando a história do Estado – personificada nos calçados de seus muitos figurões – que foi melhor ouvido, ainda que não cheguem às nossas orelhas suas notas e palavras.

Nesta semana, comunicado de agentes da Prefeitura pedem que ele, o kit de engraxate e o passado do centro de Campo Grande que o acompanham há 38 anos entre a Rua Dom Aquino e o cruzamento da 14 com a Barão, façam as malas e vão embora. André recebeu ordem para deixar o local, afirma o comunicado, por sua presença ser, ali, irregular. Próximo passo, ameaça o papel, é a apreensão do material que dá sustento ao engraxate.

O “saia daí” não intimida, mas entristece e desespera. Não só André, mas o resto da família (que ele sustenta) e amigos que veem no engraxate não só um trabalhador, mas um símbolo de vida bem vivida entre os surdos. O Campo Grande News entrevistou André, mas as palavras que seguem são apenas uma tentativa de comunicar o que ele diz sem dizer.

Confira o depoimento do engraxate:

Memórias – “Já tem 38 anos que eu estou aqui. Eu sempre trabalhei muito, eu gosto muito, eu fiz muita amizade, gosto demais. Eu pago o meu INSS privado porque eu sou firme, eu trabalho há muito tempo aqui. Eu tenho muitos amigos. Eles agendam, eles entregam os sapatos, deixam aqui, pegam depois”, traduziu a amiga e professora Jocimara Paiva Grilo, 42.

A imagem do fotógrafo Roberto Higa eternizou um dos dias em que o ex-prefeito e um dos nomes mais famosos de Mato Grosso do Sul – Lúdio Coelho -, tinha os sapatos engraxados por um André ainda jovem.

Os “ouvintes” é como traduz Jocimara sobre o que André conta serem os muitos apaixonados por histórias que ele guarda do passado no famoso cruzamento do comércio central. “A gente está sempre ali e sempre tem os ouvintes que ficam relembrando histórias do passado. Como que era a cidade, como eram as coisas, eu vou trabalhando e conversando, é muito divertido ficar ali”.

“E é o dia inteiro as pessoas chegam, sentam, engraxa o sapato, faz piada, brinca. Tenho cliente que é juiz, tenho cliente que é deputado, vereador, desembargador. Até mulheres que vem até mim para eu poder lustrar os sapatos e é com muito carinho que eu faço isso”, conta André.

André chegou menino do interior de São Paulo (de Andradina) com a família. O pai veio gerenciar loja em Campo Grande e com 14 anos ele aprender a lustrar calçados de gente importante, apressada, que gosta de papear, ler jornal, ver amigos no centro, vestir sapato bem bonito. Os motivos são muitos, as memórias também.

“Em 1982 eu lembro quando eu cheguei aqui, meu amigo me ensinou, eu ensinava sinais pra ele, e ele me ensinou a engraxar”, lembra André. E então, vem a tona mudança que é boa, mas também ruim, e pode levar embora 38 anos do saber estar em um mesmo lugar, todos os dias, das 6h às 18h. “A Prefeitura, ninguém falava nada”, lembra.

“E foi passando o tempo eu fiquei na Dom Aquino, passou um tempo eu vim pra cá. É um lugar onde os surdos sabem que eu estou e eles vêm, eles se encontram ali para bater papo, eles ficam ali. Os senhores, idosos, sentam. Eu já fiz muitas amizades”, afirma o engraxate.

A família que acompanha os muitos anos de sobrevivência e também a boa vivência de André revoltam-se com o “não haver” saída para a determinação. “O que acontece? Eles não quiserem nem argumentar. Você pergunta o porquê, eles falam ‘eu não sei, eu só vim fazer o meu trabalho, só vim retirar ele’”, afirma o sobrinho de André, Luiz Henrique de Araújo, 25.

“O primeiro ofício que ele aprendeu foi engraxate, aprendeu com o Carlos e ele pegou o ofício. E toda a vida ele fez isso”, conta a irmã Adriana Lúcia Ferreira, 51, que trabalhava no comércio, mas está desempregada e assim como a mãe já idosa, precisa do sustento de André. André já chegou a ganhar R$ 4 mil em um mês, mas, em média, o trabalha lhe rende R$ 1,2 mil.

“Trabalhando aqui nesses 38 anos, ajudo minha mãe que é idosa a pagar a casa, eu pago o INSS, água e luz, a cuidar da minha família. Então, a minha família é dependente do meu trabalho, o que a gente conseguiu fazer aqui. Eu e meus irmãos a gente está sempre ajudando a minha mãe. O que a gente conseguiu nesse tempo foi uma família sólida. Se eu parar com tudo isso eu vou ter prejuízo, como vou sobreviver?”, comenta André.

Não é preciso de palavras para se fazer ouvir (Foto: Marcos Maluf)
Não é preciso de palavras para se fazer ouvir (Foto: Marcos Maluf)

A tal modernidade – André é entusiasta da revitalização da região central que começou pela 14 de Julho. Só não esperava não poder estar ali todos os dias para aproveitar o que o cenário novo vai trazer.

“É muito lindo. Fazer isso no centro é bom, é importante para a gente, modernizar o centro, deixar o centro mais atrativo, eu acho que combina com o meu material que sempre deixo bonito e arrumado. Esse meu trabalho, para mim, é muito gratificante. Quando eu recebi esses fiscais, até pelo fato de eu ser surdo e não entender o que eles estavam falando, foi muito difícil para mim. Tentei falar que eu trabalho aqui há 38 anos, meu lugar é organizado, eu sou uma pessoa organizada, é um trabalho honesto. Estou recebendo muitas mensagens de amigos preocupados comigo, ficaram sabendo, o que eu vou fazer, preciso levar meu sapato, vou encontrar que horas, e como eu vou atender meus clientes agora?”, relata.

André é tão querido pela comunidade que a entrevista é interrompida pela chamada de vídeo de um amigo que também se comunica com uso da língua de sinais. O vídeo do assistente social Samuel Ferreira de Souza é fruto da tecnologia trazida pelos tempos modernos, nesse ponto, aliada.

Samuel lembra que o vento forte de novos tempos varre também, muitas vezes, olhar social de quem deveria lembrar dos trabalhadores.

“A história do André é muito importante porque ele está há muitos anos na Barão, nós temos que pedir apoio para fazer um espaço para ele, uma banca pra ele. Ele paga imposto. Os vereadores estão dormindo e esquecendo esses trabalhadores e a história do André é muito importante para os surdos. Ao invés de impedir ele de trabalhar tem que dar um espaço para ele porque ele faz parte da história”, critica o amigo.

Ofício pode ser, agora, carreira, profissão, mas para este engraxate, ainda há muita gente com muito sapato para engraxar. “Eu quero continuar, eu quero continuar meu trabalho, não quero parar, eu quero continuar trabalhando”, repetia André com os sinais.

A reportagem enviou perguntas à Prefeitura, por meio da assessoria de imprensa, com prazo de 1 hora para informações sobre a remoção, mas ainda não obteve resposta.

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