Dia Internacional das Mulheres é sobreviver a 11 facadas e um estupro
"Hoje, todas as mulheres sabem que vão sair de casa, mas nenhuma sabe se vai voltar", resume a vítima
Neste Dia Internacional das Mulheres (8), uma questão que não pode ser esquecida é o que fica para quem sofre diariamente com o medo de se tornar mais uma vítima de violência. Vítima de 11 facadas e um estupro, Márcia (*) se recupera há pouco mais de três anos e desabafa que, para ela, a data é mais um marco para dizer que nós não vivemos, mas somos obrigadas a “rezar” para sobreviver.
“Hoje, todas as mulheres sabem que vão sair de casa, mas nenhuma sabe se vai voltar”, resume a vítima. Para exemplificar, ela comenta sobre o números de feminicídios, segundo a Sejusp (Secretária de Estado de Justiça e Segurança Pública), foram cinco em Mato Grosso do Sul apenas neste ano.
Assustadora, a estatística de estupros, também indicada pela Sejusp, registra 312 casos de vítimas femininas em 2023. Além disso, já são 3.386 casos de mulheres que sofreram violência doméstica no Estado, também neste ano.
Integrando as estatísticas históricas, desde 2019, quando foi violentada, Márcia comenta que o que ficou foi um combo de dores, sentimentos e, apesar de tudo, vontade de justiça para si e para outras mulheres.
Apesar de o seu agressor ter sido preso, Márcia explica que não há uma solução mágica que irá apagar suas lembranças que ainda seguem vivas. E especialmente em uma data que celebra os direitos das mulheres, falar sobre a importância da segurança, respeito e empatia é algo que ela destaca,
“Ao invés de dar flores, poderia fazer com que as leis nos defendessem mais e nos protegessem de verdade. Acho que o maior presente é a segurança, é os nossos direitos valerem e a gente se sentir protegida”, diz sobre o que realmente deseja no Dia Internacional das Mulheres
Em um longo processo de recuperação para reconstruir sua vida, a vítima conta que o início de tudo é explicar o que aconteceu. Sabendo que até hoje há muita gente que a culpabiliza, Márcia destaca que essa é mais uma violência recebida.
Retornando a 2019, ela comenta que foi estuprada em plena luz do dia enquanto seguia a pé para casa. E, em um terreno baldio, sua vida foi tratada como nada.
“Ele começou a me esfaquear no pescoço, foram três, sendo que uma furou minha traqueia. Me recordo do estupro, quando ele mandou eu fazer sexo oral já estava esfaqueada no pescoço”, relembra sobre as violências sofridas.
Marcia narra que durante o período em que foi forçada a permanecer no terreno baldio, ela foi perfurada no abdome, costas, mão, braço e tórax. “Perfurou vários órgãos, tanto que afetou vesícula, fígado, rim, pulmão, braço, enfim. Lembro que nas últimas facadas, ele corria para fora levantando as calças, voltava e me esfaqueava. Saía do matagal e voltava para me esfaquear, aí é que pude ver a cor da pele, o cabelo e a roupa”.
Desde 2019, a recuperação tem ocorrido em etapas e, hoje, ela consegue explicar melhor sobre como cada momento é enfrentado. “No dia, era uma mistura de sentimentos. Medo, você pensa nos seus filhos, na sua família e só pensa que quer sair dali”.
Pensando nas dores físicas, ela comenta que devido às facadas, foi necessário reaprender até a falar. “Fiz acompanhamento com fonoaudiólogo, fisioterapia, vários médicos porque até hoje tenho dores abdominais, dor de cabeça forte, dor nas costas e na época fiquei cheia de hematomas”, explica.
Além de lutar pela sobrevivência durante a internação, a mulher relata que ainda era afetada pela quantidade de informações falsas que foram divulgadas por outras pessoas. “Em alguns dias eu falava para Deus “por que você não me levou?”. Hoje estou melhorando, posso dizer que estou em 70% e a luta continua”, Marcia diz.
Eu não conseguia me defender, era meu marido quem me protegia e tentava fazer de tudo para que essas coisas não chegassem em mim. Teve gente falando que eu era amante do meu agressor, por isso é que ele tinha me estuprado. É muito difícil você ser acusada de uma coisa de uma coisa que você não fez, ainda mais em uma situação dessas", Márcia explica.
Por ter ficado internada no hospital, Márcia relata que realmente só conseguiu pensar em como iria reconstruir a vida um bom tempo depois. “Você não acredita no que aconteceu, até porque a gente acha que não vai acontecer, mas ninguém está distante disso. Afeta sua família, seu casamento, afeta tudo”.
“O que fica é o medo, a incerteza do amanhã. Logo quando voltei para casa, eu tinha medo de dormir até com meu marido. Tinha sonhos em que parecia que ele ia me atacar”, relembra Márcia.
Ela comenta que por ter sido estuprada, de um contato pequeno até voltar a ter relações sexuais com o marido, tudo foi extremamente delicado. “No início, parecia que era reviver aquilo e até para o meu marido era complicado, ele ficava com medo porque como que você vai fazer? Dependendo do que faz, revive tudo aquilo que aconteceu. Demorou um tempo, foi bastante complicado”.
Ainda sobre esse tema, ela detalha que, em seu caso, o apoio do marido e os acompanhamentos médicos foram essenciais. “Parece que você não quer ter contato algum para não pensar de novo no que aconteceu. A gente sabe que é diferente, que é o marido, que tem amor, mas nossa cabeça é estranha porque a violência foi muito forte”.
Na época, desde festas em família até ficar sozinha gerava crises psicológicas intensas na vítima. Tanto que, conforme ela explica, precisou ser internada várias vezes.
Hoje, três anos depois, ela comenta que as cicatrizes deixadas em seu corpo não desapareceram, assim como as sequelas psicológicas. “Eu tinha medo de ficar com homens no ambiente, até hoje tenho um pouco. Não ando sozinha porque tenho medo, não durmo bem, nada é como antes. É muito difícil, mas sei que vou continuar melhorando”.
E, além de pensar em si, ela reforça que sua luta continua sendo por uma justiça mais efetiva. “A gente não pode se calar. Graças a Deus eu tive oportunidade de estar viva porque muitas não tem. A sociedade tem sim preconceito, o poder público faz vista grossa e, para mim, é omisso principalmente com vítimas de violência contra mulher”.
“Tenho meus filhos e nem consigo pensar se uma coisa assim acontece com eles. No Dia da Mulher, a gente devia ganhar mais atenção, ser mais ouvidas de verdade”, completa.
(*) Márcia é um nome fictício para preservar a identidade da vítima, que ainda lida com as consequências das violências.
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