E se de repente só fosse possível imaginar?
Assim como o trabalho de todos os jornalistas, o meu trabalho ocorria dentro de uma redação, para onde íamos diariamente. Por mais dinâmico que seja o nosso dia-a-dia é quase impossível conseguir impedir que a rotina casa-trabalho se torne monótona. Por outro lado, ir até a redação todas as manhãs, horário do meu expediente, era também momento em que, sozinha, me conectava com a cidade. Pela proximidade, muitas vezes ia a pé. Pela preguiça, muitas vezes ia de Uber. O leitor deve perceber que conjugo o verbo no passado.
De um dia para o outro a pandemia se impôs. De um dia para o outro o ar fresco da manhã ou a passagem borrada dos prédios a caminho do trabalho, talvez subvalorizados por mim, se tornaram uma exceção dos plantões de final de semana. Estou no home office, uma das novas palavras da moda nesta pandemia.
Refletir também é um luxo. Tenho a sorte do abrigo e ao ter abrigo não ocupo a mente com preocupações mais urgentes e sim com reflexões. Outros ocupam filas de desemprego em busca do socorro.
Mas todos nós temos vivido bocados amargos de pandemia.
Toda a minha família vive no estado de São Paulo, dos meus pais aos primos mais distantes. De um dia para o outro me vi impossibilitada de viajar para vê-los e tive que trocas a data das férias que estavam logo ali (quase única ocasião que me permite uma visita mais longa).
Minha avó, mãe do meu pai, vive em local que considero paraíso na serra paulista e no outono um universo à parte de bosques ganha vida ao redor da casa. Iria viver mais um outono com ela. Não poderei. Com tanta incerteza sobre vida e morte neste momento, não me atrevo a apostar sobre a data de reencontro. Não é exagero, agora, dizer que não sei quando a verei de novo.
Apostamos no lá fora, no “não estar sempre em um só lugar”, como refúgios para os momentos difíceis. Além disso, nos contentamos com o limite daquilo que nos é dado. Com o limite oferecido pela solidez de pisar em um lugar que não seja a própria casa, em sentir uma textura de um novo objeto nas lojas. Nos acostumamos a pintar a vida com cores prontas. Ao alcance das mãos.
Pergunto de novo: e se de repente só fosse possível imaginar?
Acontece que imaginar não é um "só". Imaginar é grandioso. Imaginar é o primeiro passo antes de criar algo novo. Imaginar é compor uma realidade sem tocá-la. É, literalmente, compor com imagens.
Infelizmente essa forma de estar no mundo tem sido abandonada, deixada ao universo das crianças, como se fosse algo menor (como se nós adultos fôssemos tão superiores às crianças, ledo engano). Nossa limitação ainda vai além. Estamos completamente hipnotizados com o atualizar e atualizar constante das páginas das redes sociais. Essa hipnose perigosa também passamos às crianças, tão solitárias com seus celulares, tablets etc.
Somos constantemente invadidos por um excesso de imagens, mas não imaginamos. Ainda assim, é possível que uma imagem nos permita imaginar.
Minha primeira missão do expediente de trabalho tem sido escrever a previsão do tempo e nesse período de isolamento me percebi todos os dias imaginando que parte da cidade eu veria em uma fotografia. Qual será a cor do céu, será que o frio que descrevo foi visto em um bairro longe do meu? Qual árvore floriu?
Sim. Ao não poder sair para ver o céu em outras partes da cidade meu exercício é imaginar. Os fotógrafos às vezes me permitem sair do lugar sem mover um passo. Sentir a cidade sem ver a rua. Eles também imaginam antes do clique eternizar o momento em uma imagem.
Nesta semana uma fotografia em especial capturou minha imaginação. O fotógrafo Henrique Kawaminami conseguiu congelar o momento perfeito em que se formou no céu de Campo Grande um degradê lilás e rosa. No exato momento em que vi a imagem me lembrei de Vanilla Sky, um filme dirigido por Cameron Crowe, um remake de Hollywood do filme espanhol "Abre los ojos", dirigido por Alejandro Amenábar.
As memórias que ficam são aquelas que significam e, às vezes, muito tempo depois é que percebemos o que fica conosco.
Para não dar spoilers apenas vou dizer que esse filme simboliza o sonho, a fuga e o refúgio quando a realidade é dura demais e nos atravessa. No filme há o mesmo “céu de baunilha” com o degradê capturado pelo Henrique. É, para mim, uma das fotografias mais belas do cinema.
É incrível como o que é belo pode nos permitir ir além. Além do nome do filme, imediatamente comecei a ouvir o refrão de uma das músicas que fazem parte da trilha sonora de Vanilla Sky: Sweetness Follows, do R.E.M(a doçura segue, em tradução livre).
Coincidência ou não (raramente é) a música fala de morte, de perda, das pequenas coisas que nos afundam, mas o refrão lembra da contradição da vida inteira: mesmo nos momentos mais difíceis, a doçura segue. A doçura segue e tentar encontrá-la em coisas que não são tangíveis, como o imaginar, pode ser bobagem, mas carrega muita possibilidade neste período que estamos vivendo. As coisas podem ser importantes mesmo quando são singelas.
Neste momento penso que imaginar é nossa resistência para elaborar mais do que uma sobrevivência à essa época difícil, e sim uma nova forma de vivência. É momento de que as imagens nos permitam associar, até, realidade com ficção. Quem sabe o que pode surgir depois da imaginação?
Sei que tudo parece amargo agora e que, de fato, é mais amargo para uns do que para outros. Ainda assim, para quem consegue e se permite imaginar, esse tempo estranho não precisa necessariamente amarrar a boca o tempo todo.
Meus avós paternos são divorciados há muitos anos. Parece até roteiro de filme: minha vó vive nas montanhas e meu avó vive no litoral. Bem, ele vivia.
Logo no início do meu período de isolamento meu avô se foi (para nós não foi tão grande a surpresa pois ele já sofria com uma doença). Meu luto não tem lugar neste relato e nem cabe aqui, mas cabe a mim um pouco de exposição quando penso que o que conto pode ajudar.
No dia do enterro, tudo o que eu puder ver do meu avô foram imagens. Foi pelas fotografias antigas, ele ainda muito novo, ele com a minha avó, que eu tinha guardadas no meu celular, que puder me despedir. Foi pelas fotografias que o meu irmão e o meu pai fizeram da praia onde meu avô morava, da coruja que de vez em quando pousava em sua casa (e que voltou a pousar no muro no dia do enterro), do campo aberto e selvagem onde é o cemitério, que pude me despedir. Só me despedi porque puder imaginar.
As imagens podem ser muitas coisas, até despedidas, mas as imagens também são encontros.
Se você olhar a previsão do tempo de quinta-feira (16) vai ver que ao menos no horizonte de Campo Grande a doçura segue no céu de baunilha. Se você não pode buscar na realidade sólida dos lugares e das pessoas que sente falta a doçura que precisa, o encontro está a uma distância singela de imaginar.