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Comportamento

Experiência em isolamento e descoberta da comida afetiva

Isolada, Priscila e a filha, Maria Eduarda, foram para a cozinha e descobriram quão afetiva pode ser a comida feita com amor

Paula Maciulevicius Brasil | 11/04/2020 08:04
Priscila e Maria Eduarda, mãe e filha que têm sentido a mudança de hábitos, para melhor, com a quarentena. (Foto: Arquivo Pessoal)
Priscila e Maria Eduarda, mãe e filha que têm sentido a mudança de hábitos, para melhor, com a quarentena. (Foto: Arquivo Pessoal)

Desde que o isolamento começou, o Lado B tem procurado reforçar aos leitores que fiquem em casa, mas continuem falando com a gente. Foi o que a servidora pública Priscila Guimarães fez. Neste texto, Pri conta como a rotina mudou com a quarentena e a descoberta de, quem sabe um novo hobby, ao fazer da cozinha um lugar de união e das panelas sair a comida afetiva.

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Experiência em isolamento e descoberta da comida afetiva

Diante das incertezas financeiras, políticas e de saúde geradas com a pandemia do novo coronavírus, na primeira semana de confinamento foram comuns os sentimentos de ansiedade, medo e preocupação, com a consequente insônia. 

Enquanto para uns o freio brusco na rotina impôs alteração favorável por não perder mais tempo no trânsito, não se estressar com horário de deixar filho na escola e chegar no trabalho ou por não ter que acomodar as inúmeras obrigações na apertada agenda do cotidiano; para outros, equilibrar a produtividade no teletrabalho, fazer a limpeza da casa, e ainda, a obrigação de cozinhar próprio alimento trouxe sobrecarga de tarefas, principalmente para as mulheres.

Eu, servidora pública, mãe, esposa e com rotina regular de trabalho de bater o ponto todos os dias da semana, ainda não sabia se faria parte do time dos sobrecarregados ou dos adeptos. 

Pensando em aumentar nossas barreiras domésticas contra o vírus, estabelecemos um protocolo sanitário a ser seguido por cada membro da casa: a regra é não sair, mas se for inevitável, quando voltar, deixar sapatos na garagem, ir direto para o banho e trocar toda a roupa que veio da rua – fora limpeza de celular, chave, bolsa e carro com álcool. A etiqueta sanitária vale especialmente para o meu marido, policial civil, que não tem como fazer isolamento por conta da profissão.

Maria Eduarda nas aulas on-line. (Foto: Arquivo Pessoal)
Maria Eduarda nas aulas on-line. (Foto: Arquivo Pessoal)

Em 17 de março, passei a fazer teletrabalho do dia pra noite sem nunca ter experimentado essa modalidade. No começo, a internet não estava comportando tanta gente logada ao mesmo tempo e tive de achar horários alternativos para conseguir produzir, problema que logo foi resolvido. Minha filha, Maria Eduarda, passou a fazer aula on-line (gravada e ao vivo), uma novidade para uma adolescente de quase 15 anos – que precisa ter foco para não ficar no celular e deixar o professor falando sozinho na tela do computador. 

Para a nova experiência, montamos duas estações de trabalho nos nossos quartos e ficamos cada uma trabalhando e estudando no seu canto. Aprendi a respeitar o espaço dela, afinal está no computador estudando, e não vendo seriado. Quando a aula dela é ao vivo eu não posso entrar no quarto em hipótese nenhuma. “Mãe, você aparece no vídeo.” 

Logo percebi aumento de ansiedade na minha filha já que o aniversário dela é em junho; ainda bem que o motivo é forte - festa é inviável em tempos de covid-19.

O que fazer  - Pensando em amenizar a mudança da rotina da família nessa realidade distópica, montei um cronograma de atividades que inclui exercício em casa no fim do dia, sessão de filmes, o dia de cada um na cozinha, mais conversa à mesa, ouvir música e outras atividades. Peguei até um quebra-cabeça para montar. Meu marido passou a se dedicar mais ao violão e à marcenaria nas horas vagas. E também, dividimos as tarefas de limpeza da casa já que ficamos sem faxineira.

O marido dedicou tempo à marcenaria. (Foto: Arquivo Pessoal)
O marido dedicou tempo à marcenaria. (Foto: Arquivo Pessoal)

Como o ser humano é fácil para se adaptar, já relaciono os pontos positivos da experiência: posso fazer um lanche no meio da tarde junto com minha família, posso almoçar com calma – depois eu consigo trabalhar em horários alternativos, ir até mais tarde ou mesmo trabalhar no fim de semana. Não que isso seja o certo, leio sempre que é importante manter a rotina no trabalho, mas eu fico o dia inteiro de pijama e rendo muito, garanto. Além do mais, não preciso matar um leão no trânsito pra chegar no trabalho, academia, natação...

Bem, depois de ter arrumado todos os armários e gavetas, limpado o ar-condicionado, lustres, ter feito curso on-line grátis, visitado virtualmente museus, ter feito jardinagem e etc, parei de fazer dieta restritiva e “coloquei a mão na massa” para tornar o isolamento mais agradável. Nunca tinha visto tanto vídeo de receita e o conteúdo é vasto, desde receitas simples para quem não tem intimidade com a cozinha até os mais sofisticados.

Também busquei um livro de receita que estava guardado e parti para a realidade: fiz pão, massa de macarrão, bolo formigueiro, sobremesa, caponata de berinjela, café cremoso de congelador, além do trivial arroz, feijão, carnes e saladas. Descobri que não é difícil, nem demorado e que não precisa de elaboração para ser feito com amor. 

Uma lição pra mim que sempre almoço em restaurante ou compro refeição pronta para levar. O isolamento me ensinou a transmitir amor para minha família por meio da comida.

Mãe e filha aprendendo o que a cozinha afetiva tem a nos ensinar. (Foto: Arquivo Pessoal)
Mãe e filha aprendendo o que a cozinha afetiva tem a nos ensinar. (Foto: Arquivo Pessoal)

E como sobra tempo, até a minha filha está aprendendo atividades domésticas como cozinhar e passar. Antes da epidemia, cada um tinha seus horários e agendas lotadas com atividade física, trabalho, estudo, inglês, faculdade e, nunca almoçávamos juntos durante a semana. O único encontro familiar era no jantar (isso desde que a Maria Eduarda tinha 12 anos) – logo depois tomávamos banho, cada um tinha um minuto livre para leitura de livro, música, vídeo, jornal e depois já era hora de dormir e começar tudo de novo no outro dia. 

Eu nunca tive paciência para assistir filmes românticos, ficção científica ou de heróis com minha filha, então, durante a pandemia, começamos a ver filmes importantes para o vestibular e montamos uma ótima lista para ajudá-la na redação – o último que assistimos foi “300”, que retrata uma das invasões persas. 

Diante desse cenário, acredito que não vamos voltar para o mesmo mundo de antes da pandemia. Estamos construindo agora o que será lido nos livros de história lá na frente. Fazer dessa parada na rotina um momento de reflexão para o que é realmente importante na nossa vida é essencial.

A experiência, pelo menos, fez minha família experimentar o alimento que eu nunca tinha tempo de preparar. Quem sabe, lá na frente, a turma aqui de casa vai se lembrar da comida afetiva dos tempos de coronavírus. A parada brusca também serviu para almoçarmos juntos ou mesmo passarmos mais tempo fazendo qualquer coisa, mas juntos. Agradeço por poder fazer teletrabalho, pelos momentos de união e diálogo. Não precisaria ter sido numa situação excepcional para descobrir coisas tão simples.

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