Luzia se foi, mas beija-flor é herança de amizade deixada para Marlene
Vizinhas se transformaram em família e, agora, quintais preservam o carinho dividido no cotidiano
No quintal de Luzia Demetrio Santana, o tão querido ninho de beija-flor continua por ali, ocupado pela mãe que cuida de seus pequenos ovos. Desde o dia 10 de setembro deste ano, é ele quem faz os olhos de Marlene Alves de Souza se conectarem às boas memórias com Luzia, a vizinha que se tornou parte da família e se foi deixando as pequenezas da vida, como o colibri, de herança.
Quando recebeu a notícia de que a amiga havia partido, o choro de Marlene precisou ser transformado em texto. O café compartilhado após o almoço de todos os dias foi coado em palavras e, agora, as plantas do quintal em frente de casa integram as memórias da história que nasceu por acaso do destino.
“Preciso escrever quando sinto tristeza ou algo assim. No domingo, fiquei muito triste, não quis nem sair de casa. Fiquei pensando nela, comecei a escrever e veio a crônica”, explica Marlene, que é professora aposentada.
Na crônica, detalhes da rotina foram eternizados e, ali, desde o beija-flor até o momento diário para dividir a bebida na varanda se encaixaram como peças da memória construída por anos. Vizinha de condomínio, Marlene explica que chegou ao bairro antes de Luzia e graças à simpatia da então nova integrante é que a conexão surgiu.
Inicialmente, as duas tinham apenas a rua em comum, mas conforme o tempo passou, ter uma a outra como vista do quintal garantiu que o companheirismo surgisse. “Ela era muito autêntica, gostava de se comunicar e todo mundo aqui do condomínio gostava dela. Desde os adultos até as crianças, todo mundo acabou se tornando família”.
Definida pela amiga como brincalhona, a Luzia enxergada por Marlene tinha um espírito de criança. Seja pelo gosto por detalhes coloridos ou pelos comentários sem papas na língua, cada característica compunha a vizinha de uma maneira carinhosa.
Longe de se encaixarem na categoria de vizinhança que não faz questão de dizer um “bom dia”, as duas aprenderam a cuidar uma da outra, como narra a professora. “De manhã, ela abria as cortinas e eu sabia que ela estava bem. Se não abrisse, ia até lá perguntar. Se acontecia algo, a gente estava por aqui”.
Tanto é que durante os períodos de viagem, a saudade entre as amigas também ganhava voz. “Eu viajei por um tempo e quando voltei, ela comentou que tinha feito falta. Era assim. A gente se conhecia e de um tempo para cá comecei a notar que ela já estava ficando mal”, diz.
Olhando a amiga no “banco da praça”, como nomearam o canto na varanda de Luzia em que ela passava as tardes, Marlene narra que a partida aparecia nos detalhes. E, quando a saúde da vizinha começou a decair, a parceria continuou, mas à distância.
Tendo se mudado para Mato Grosso, para ser cuidada pela família, os últimos contatos de Luzia seguiram sendo com a amiga de Campo Grande. “Ela tinha perguntado como a casinha dela estava, ficou preocupada. Eu contei que a gente estava dando água para as plantas, cuidando de tudo e que ela podia ficar tranquila”.
E, quando a notícia de que Luzia havia partido chegou, a professora só conseguiu continuar regando as plantas da vizinha, cuidar do beija-flor e, como ela diz, chorar fazendo o café que agora é compartilhado com as lembranças.
Abaixo, veja a crônica escrita por Marlene:
Lembranças
A cortina era o sinal. Se estava fechada é porque ela estava dormindo. Eu observava, quando Luzia acordava, podia até não abrir a janela, mas a cortina era imediatamente aberta. Então eu sabia que ela levantara. Mas se desse nove horas e a cortina continuasse fechada, eu ia bater em sua porta para ver o que havia acontecido. Ela respondia que estava tudo bem, eu então me tranquilizava. Sabia que assim, logo estaria sentada no seu banco rústico, que foi apelidado de "O banco da praça"!
Foram muitos momentos partilhados nessa varanda repleta de plantas, flores e enfeites na parede. Mas de todos os ornamentos ali, tinha um do qual ela se orgulhava mais: o ninho do beija-flor. Ela me provocava dizendo: "É meu beija-flor, só eu que tenho!" Chiquinha botava, chocava e, quando os filhotes ainda tinham as primeiras aulas de voo com a mamãe beija-flor, estávamos nós duas a espantar os gatos que ficavam de tocaia para abocanhar os minúsculos pássaros! Algumas vezes não conseguimos salvar os bichinhos.
Hoje, olhando pra sua casa com as cortinas cerradas, percebo que elas são apenas a simbologia da cortina da vida. Essa sim, se fechou para sempre! Fechou para Luzia. Fechou nesse mundo, mas uma porta se abriu e um novo sopro de vida lhe foi dado por Deus! Agora é vida eterna. Sem dores, sem angústias e sem falta de ar. E o bom é imaginar que ela esteja em um lugar muito lindo, com flores, borboletas e colibris multicores!
Para nós que ficamos por aqui, restam as lembranças de muitos momentos. Às vezes brincando e alfinetando uns aos outros , às vezes cuidando quando a outra precisava. Acho que isso é amor! O amor fraterno é assim, não há fingimento nem melindres. Quando não concordamos, falamos a verdade sem deixar mágoas para nem um dos lados.
O resultado é que em seguida estávamos tomando um cafezinho da tarde e conversando em meio às risadas! Descanse em paz, amiga Luzia! Deus ilumine sua alma! Será sempre lembrada como a mulher com jeito de menina travessa, sem papas na língua, mas que conquistou a todos, adultos e crianças. Meninas de 5, 6 anos a chamavam de "Amiga"! Vá conquistar os anjos do céu! Pois já conquistou os anjos da terra! Deus é contigo!
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