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Comportamento

Mesmo sem sangue frio, há 18 anos, Dalizia trabalha com a morte

Mulher presta serviços que vão da retirada dos corpos até entrega para sepultamento

Aletheya Alves | 09/03/2022 08:31
Dalizia Aparecida Xavier trabalha há 18 anos em Pax. (Foto: Arquivo Pessoal)
Dalizia Aparecida Xavier trabalha há 18 anos em Pax. (Foto: Arquivo Pessoal)

Há 18 anos, uma semana depois de entregar o currículo ao lado de seu pai em uma funerária da Capital, Dalizia Aparecida Xavier precisou aprender a lidar com a morte pessoal e profissionalmente. Em sete dias, veio a morte do pai e logo em seguida, o emprego na funerária, que segue até hoje.

“Eu busco os corpos nas residências e hospitais, faço cortejo e sigo até a entrega para sepultamento. Só a parte de preparo que não faço, porque é muito forte”, resume. Depois de tanto tempo trabalhando com a morte, a agente funerária detalha que muitas imagens ficaram fixadas em sua mente, mas que o momento de ter sangue frio ainda não aconteceu.

A história de Dalizia chegou até o Lado B após uma família ser atendida pela funcionária três vezes desde dezembro e garantir que ela está longe de ser fria. Surpreendida pelo carinho, a aposentada de 61 anos contou à reportagem que perdeu sua mãe e irmãos para a covid-19 e cansada da dor durante os procedimentos, foi acolhida pela agente funerária.

Ainda muito afetada pela perda dos familiares, a aposentada preferiu não se identificar, mas quis compartilhar o sentimento causado pelo trabalho de Dalizia. “Para mexer com isso, precisa de muita força e ela foi extremamente educada. É daquelas pessoas que realmente fazem o serviço com amor e isso nos ajudou muito”, disse.

Garantindo que seu trabalho vai muito além da burocracia, Dalizia explica que aprendeu a importância de oferecer algum conforto para quem perdeu um ente querido quando seu pai faleceu.

Eu entrei na Pax após o óbito do meu pai. Uma semana antes, ele me encorajou a entregar currículo lá e eu nem imaginava que ele teria um derrame. Fizemos os procedimentos em outra empresa, mas o local que eu trabalho hoje me chamou e, desde então, sigo com eles”, conta.

Inicialmente, sua função era administrativa, mas aos poucos, se aproximou dos rituais funerários e foi transferida para o setor atual. “Sempre falo que nós precisamos ter cuidado com as famílias, porque é um momento difícil. Eu perdi meu pai, todo mundo vai passar por esse momento e ficamos sensibilizados.”

Lidando com as mortes

Única mulher entre sete homens que trabalham no mesmo setor, a funcionária conta que além de lidar com a complexidade das mortes, ainda precisa combater questionamentos sobre sua capacidade. “Ainda tem o tal do machismo até hoje, muita gente acha que não vou ter força para levantar os corpos ou que vou ser sensível demais. Mas as pessoas precisam entender que mulher consegue fazer o que quiser e faço meu serviço muito bem.”

Entre os momentos mais complicados da profissão, a agente detalha que consolar familiares durante a despedida costuma ser um período difícil. De desmaios até crises de ansiedade, tudo é acompanhado durante o expediente e, por isso, um método para se distanciar e não se afetar tanto e ao mesmo tempo manter o carinho vem sendo desenvolvido.

Traje específico para trabalho durante a pandemia devido às chances de contaminação. (Foto: Arquivo Pessoal)
Traje específico para trabalho durante a pandemia devido às chances de contaminação. (Foto: Arquivo Pessoal)

Especificamente sobre os procedimentos, para a funcionária, o cenário de mortes já era complexo antes da pandemia, mas o aumento assustador na quantidade de enterros chegou para tornar tudo ainda mais sensível. Com esse novo panorama, pela primeira vez, durante a mais de uma década de trabalho, Dalizia chegou a pensar em abandonar a função e buscar novos caminhos.

Eu atendi várias famílias que não perderam uma pessoa, mas duas, três. Tudo isso de mês em mês. Como as pessoas estavam sendo enterradas sem velório, foi muito difícil. Eu não sei quantas vezes entrei no carro e chorei porque não podia fazer nada”, explica.

Além do aumento nas mortes, os funcionários ainda precisaram se adaptar a viver com o medo da contaminação por covid-19. Por isso, trajes específicos foram usados por todos, inclusive, por Dalizia.

Enquanto antes de 2020, a agente cuidava de três enterros por semana, após a pandemia, o número aumentou para mortes quase diárias e praticamente todas por covid-19. Entre as cenas mais fortes que viu nesse período, ela narra que uma filha, sem poder se despedir da mãe, chegou a se ajoelhar pedindo para que o caixão fosse aberto.

Foi nesse momento que ela reconsiderou continuar no serviço e após ponderar, decidiu que iria seguir no caminho. “Entreguei nas mãos de Deus e enquanto for a vontade dele, vou continuar sim.”

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