Na rua da Saudade, passado é sinônimo de gratidão pela vida
Mesmo que 2021 ainda tenha cara do ano passado, moradores celebram a vida e tem a esperança pelos novos tempos que virão
Entre as avenidas Marechal Deodoro e Bandeirantes se esconde um trechinho de rua transversal que leva no nome o sentimento mais nostálgico de todos: a saudade. Para quem mora na única quadra dela, falar sobre o passado tem peso melancólico como é esperado de ser. Porém, numa pandemia que virou o ano e já vai completar "aniversário" de 12 meses, o que ficou para trás leva agora o significado da gratidão pela vida que se celebra hoje.
O casal Francisco de Almeida Lobo e Dayanny Gonçalves Muniz moram na rua da Saudade há 36 e 31 anos, respectivamente – ou seja, desde que nasceram. Os dois acompanharam a mudança dos anos na região da Vila Bandeirante, assim como as pessoas que já partiram, como é o caso da mãe de Chico.
"Éramos como unha e carne. Para mim, a saudade deixada por Dona Sirlei significa tudo que fez e que ainda faltaria ter feito. É um sentimento especial, é um amor incondicional que eu ainda sinto e que gostaria de ter compartilhado presencialmente com ela por mais tempo", afirma Chico sobre sua matriarca, que morreu em 2011 aos 56 anos.
"Já até pensamos em nos mudar, porque passar a vida inteira carregando o sentimento da saudade é pesado. Mas aqui é um bom bairro, e moramos numa casa confortável e que foi herança da família. Quem sabe um dia...", diz Day. Residência esta que foi onde o marido sempre viveu e sente a mãe pelas marcas na paredes.
Ao relembrar o passado, a saudade também fica nos tempos da infância, há 20 anos atrás, de quando a rua era sem saída e o trânsito intenso de hoje não incomodava ninguém. Tudo ali era mais pacato. As crianças brincavam sossegadas na rua. A vizinhança era mais unida. Até mesmo o primeiro olhar, o primeiro flerte e o primeiro beijo do casal também pela região, aos 14 anos. O gostinho de outrora leva doses de amor, que anos mais tarde gerou o único filho do casal, Rafael. É ele o menino que sente falta da escola, dos amigos, do passear no shopping e soltar pipa no parque… tudo por causa do vírus.
Mas tem coisas que não vão deixar nenhuma saudade. Sair de máscara, higienizar tudo, lavar a mão várias vezes, ficar 1 ano presos dentro de casa. Day tem Granulomatose de Wegener, que é uma doença autoimune, portanto se enquadra no grupo de risco.
"Fomos obrigado a se adequar à nova realidade, nunca vi nada igual. 2020 foi um ano tão adverso que tivemos todos que nos superar. Porém, num ano que tantas pessoas morreram, vitória é todo mundo que saiu dessa e continua vivendo", considera a esposa.
"É claro que o ano passado não vai deixar saudades porque estamos confiantes no futuro. Mas o que se passou foi um aprendizado necessário – aliás ainda é – e portanto não se pode perder as esperanças das novas resoluções, da espera pela vacina", acrescenta.
Tudo que não te mata te fortalece".
Para Chico, as coisas mais simples da vida foram o que fizeram toda diferença. "Ir ao supermercado, por exemplo. Brincar com meu filho, estar em família, olhar para a lua, sentir o ar puro. Antes a gente reclamava daquilo que tínhamos, agora a reclamação é daquilo que tanto nos falta", opina.
Vizinho de frente, Fábio Pinto, 40 anos, se mudou justo no ano passado para o endereço atual onde mora na rua da Saudade. "Assim que estourou o Carnaval eu já vim pra cá com a minha esposa". Para ele, assim como a família Muniz Lobo, esse início do "2020: parte II" também é para se repensar o passado com a gratidão em mente do futuro que vem aí.
"Ainda é possível fazer resoluções. Mas o que tá faltando é uma conscientização de que a pandemia é coisa séria. O negacionismo é grande. Todo mundo teve que se acostumar forçadamente de forma individual, mas isso não quer dizer que o respeito, o senso de coletividade deva ser jogado pela janela", julga.
Fábio afirma que gosta muito de morar na rua e que o nome "melancólico" não estraga a tranquilidade do logradouro. Neste 2021, a espera da vacina promete que os encontros presenciais para matar a saudade voltem a acontecer.
"Estou a 1 ano sem ver meu pai, sem abraçá-lo, sem vê-lo pessoalmente. Particularmente, a pandemia me acendeu aquela essência de valorização ao simples, às pessoas, à união", confirma. "Na pandemia, a saudade veio bater mais forte na porta", finaliza. Quem sabe, neste ano não ela não estará com os dias contados?
Curta o Lado B no Facebook e no Instagram. Tem uma pauta bacana para sugerir? Mande pelas redes sociais, e-mail: ladob@news.com.br ou no Direto das Ruas através do WhatsApp do Campo Grande News (67) 99669-9563.