No Santa Luzia, filhos de João do Ovo resgatam doce tradição iniciada em 1986
Muitos moradores cresceram junto as festas e agora levam os filhos e netos
Uma sopa em prol da saúde da filha em 1986 virou uma tradicional festa de Dia das Crianças, que se estendeu por 25 anos, no Bairro Santa Luzia. Mesmo com uma pausa por motivos financeiros, o desejo de continuar nunca se apagou. Em 2018, mesmo debilitado no tratamento contra câncer, João Manoel da Silva, João do Ovo caminhou pela região entregando doces. Ele faleceu um mês depois, aos 66 anos, e para resgatar o legado de amor ao próximo, a família retomou a comemoração.
O retorno da festa foi um motivo a mais de celebração. Na 26ª edição, moradores que um dia participaram como crianças, ontem levaram os filhos. A fartura foi grande, assim como João do Ovo gostava. Das 8h30 ao meio-dia foram servidos muitos cachorros-quentes, suco, pipoca e doces até para jogar para o alto.
Além de muita brincadeira preparada pelos familiares, a comemoração contou com cama elástica, pintura facial e até uma turminha de palhaços, que chegaram de caminhão na festa. Toda a refeição servida foi preparada na casa, na Rua São Ramão.
As moradoras Marta do Rosário, de 40 anos, e Marilene Moreira, de 50 anos, conhecida como “Toquinha”, não perdiam uma festa e agora retornaram com filhos e netos. “Eu participei desde os 9 anos. E ele sempre ajudou, deu brinquedo, levou doce no bairro inteiro, sempre vestido de palhaço. Lembro como se fosse hoje de uma das festas em 1998”, conta.
“Eu trazia meus filhos, agora traga meus netos. É muito bom, a gente amava ele de coração mesmo. A família dele é muito amada aqui no Santa Luzia. Ficamos felizes que os filhos voltaram a fazer”, frisou Toquinha.
Pedro Rosário Caetano, de 53 anos, e a filha Alessandra da Silva Caetano, de 23 anos, reuniram gerações na festa. “Eu criei meus filhos no Santa Luzia e eles sempre vieram. Agora tenho meus netos e eles vem também”, conta Pedro. “As festas são muito boas e agora trago meus filhos”, completa Alessandra.
Caroline Rodrigues, de 37 anos, levou a filha de 3 anos, pela primeira vez. Ela chegou ao bairro há cinco anos e mora em frente à casa da família de João do Ovo. Ela viu de perto a entrega de doces feita no ano passado pelo vizinho. “Ano passado ele já não estava tão bem, mas se vestiu de palhaço e foi distribuindo. Muito bonito”, disse.
João foi vigilante noturno por muitos anos e durante o dia vendia ovos. Logo depois montou um comércio e o apelido de João do Ovo pegou.
Onde tudo começou? A viúva Madalena Nogueira Lopes, de 52 anos, explica que tudo começou na gestação. Com de sintomas de gravidez, ela foi ao hospital, mas o médico disse que não havia feto nenhum. Madalena só retornou ao médico aos 6 meses, com a barriga crescendo e, de cara, descobriu que havia possibilidade da filha nascer com alguma deficiência, por incompatibilidade sanguínea entre ela e o marido.
“Na época o médico disse que eu teria de tomar uma injeção, mas meu marido era vigilante ganhava um salário mínimo e a injeção custava um salário. Então ou nos alimentávamos ou eu tomava a injeção. Como eu não estava sentindo nada fiquei sem tomar. Na época também teve um erro de conta do médico e ela nasceu em casa, sorte que minha mãe era parteira”, conta.
Aos 9 meses, a filha apresentou sintomas de meningite, ficou internada no CTI da Santa Casa e a promessa surgiu em prol de sua saúde.
“Fizemos um almoço para sete crianças, mas também vieram os pais e alguns vizinhos e umas 25 pessoas comeram. No ano seguinte fizemos um bolinho, que foi aumentando nos anos seguintes, até chegar a 200 quilos. Nós íamos retomar a festa no ano passado, mas ele estava muito debilitado. Ele mesmo disse que faria esse ano, mas faleceu antes. Aí reunimos amigos e família para fazer esse ano”, explica Madalena.
Adriano Lopes, de 33 anos, o penúltimo dos cinco filhos de João, nasceu um ano depois do inicio da festa. Ele viveu todas as fases da comemoração e ressalta que o pai nunca parou de levar doce às crianças. "Meu primeiro sentimento é de gratidão. Ele fez a festa por 25 anos, parou um tempo causa da situação financeira, mas nunca deixou de distribuir doces. Ele descobriu o câncer em 2017 e, no ano passado, ele estava bem debilitado, um dia antes nem estava andando, mas no dia da festa um amigo do bairro que também era palhaço veio ajudar, ele ficou emocionado, e quis sair para entregar", conta.
Adriano também lembra de como o pai cuidava da rua onde moram. “De dois em dois meses ele fazia a limpeza da quadra. Ele conseguia o cal de doação e o pessoal da rua ajudava com a mão de obra. A ideia dele era que se o vizinho da outra quadra, visse a quadra dele bonita ficaria com inveja e também pintaria a dele. Hoje não pintamos com tanta frequenta, mas de quatro em quatro meses”, lembra.
Muito emocionada, Andreia Lopes da Silva, de 34 anos, reafirmou o orgulho de ter tido um pai como João do Ovo e a gratidão pelo que ele fez.
“É muito orgulho de saber que ele fez isso por mim e pelas crianças. Meu pai não tinha só cinco filhos, ele mesmo dizia que todos eram seus filhos. Tenho muito orgulho de estar com meus irmãos em união, com todos que cresceram juntos. É uma história muito bonita e nós tínhamos que fazer isso por ele, porque ele tinha muito orgulho de fazer essa festa. Nós queremos continuar, eu moro em Três Lagoas e mesmo que eu não participe, meus irmãos vão estar sempre aqui”, ressaltou.
Um dos fantasiados, o filho caçula de João, André Lopes, de 28 anos, conta que o pai tinha o desejo de voltar a com a festa. Depois do falecimento, decidiram retomar. “É uma emoção muito grande. Teve dia que eu pensei que não conseguiria fazer, então, graças a ele e a Deus nós conseguimos, e hoje isso é uma realização. Ele deve estar rolando de alegria lá em cima. Logo que ele falece, nós, os filhos, sentamos e decidimos que íamos fazer. No ato do sepultamento do meu pai eu disse que seria o palhaço da festa”, lembra o fotógrafo.
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