No tribunal das redes sociais, estupro pela ótica de quem foi vítima aos 15 e 25
Quando eu tinha 15 anos, eu tinha acabado de perder minha irmã, que morreu em condições extremamente suspeitas ao cair do décimo nono andar do prédio. No mesmo dia que minha irmã foi enterrada, minha outra irmã deu a luz a minha sobrinha de surpresa, sim, porque ela teve uma gestação escondida. Minha mãe, que amargava a dor de perder uma filha e a criação de uma neta, que era uma alegria descuidou de mim por inteira.
Eu comecei então a beber – não era tão grave uma menor beber em 1996. Beber era algo que me deixava melhor, mas eu ainda era moça (virgem, para quem não sabe esse linguajar) e um dia comecei também a fumar maconha. Eu tinha só 15 anos, uma família desestruturada por uma morte trágica e amigos que além de tudo eram mais porra louca que eu. Um dia, tomando pinga com guaraná, um menino que eu “gostava” me chamou para levar em casa. Ele tinha 20 ou 21 anos. Eu estava muito bêbada. Muito bêbada mesmo.
Eu era uma daquelas mocinhas românticas, que acreditava que o mundo poderia ter conto de fadas, que acreditava que a vida era possível naquele cenário de castelo e queria ter uma primeira vez num lugar lindo, de céu estrelado e muito romantismo. Mas não foi isso que aconteceu.
Esse rapaz, me levou para um lugar e me estuprou. E me deixou ali. Um amigo meu me achou, talvez ao ler esse texto ele vai saber o que aconteceu e porque eu estava chorando naquele dia. E ele me disse: “Não fala nada, eu vou te levar para casa”. Minha calcinha estava rasgada, e meu coração despedaçado. Sangrou, mas sangrou minha alma e todo meu romantismo e todos os sonhos que eu tinha para uma vida de conto de fadas.
Não, eu não era santinha, eu sabia o que era sexo, aliás, eu sonhava com isso e sabia que era bom. Mas não foi bom, e não foi o que eu quis, porque por mais que eu falasse para ele parar, ele não parava. E como eu estava bêbada, foi fácil para ele. Muito fácil, afinal, eu “gostava” e flertava com ele, mas nunca tinha beijado aquele cara, e não era aquele o cenário que eu sonhava. Por dias, eu amarguei a dor, a vergonha e ainda tive que conviver com ele, porque ninguém acreditaria em mim, e apenas minha melhor amiga na época acreditou.
Sexo ainda era pudor, sexo ainda era algo que a gente guardava para gente, e não saia contando para todo mundo, nem expondo, mas era algo que para mim, a partir daquele momento passou a significar dor, vergonha e desrespeito.
Aos 25 anos, eu estava em uma entrevista de emprego. Nesse lugar um homem – que era o dono da empresa, me chamou e falou que via todas as minhas fotos no Orkut e descreveu a roupa que eu usava quando me viu entregando o jornal da faculdade. Na época, eu estava no último ano de Jornalismo. Eu acreditei no que ele me dizia. Até que tudo mudou. Esse cara tinha uma arma e me estuprou.
Eu, que aos 25 anos já tinha pelo menos sete tentativas de suicídio no currículo, vi meu mundo desmoronar mais uma vez. E sob ameaça, fiquei aquele dia inteiro lá. Eu sentia medo, nojo, raiva de mim porque não gritei, raiva de mim porque não o matei. E então fui para meu trabalho em um call center. Lá, fui atendida por uma psicóloga, mas eu não queria voltar para casa, eu queria ficar perto de quem eu me sentisse protegida. Quando cheguei em casa, eu desmaiei de sono, numa tentativa de esquecer tudo aquilo, e quem sabe continuar a vida no outro dia. Eu me sentia suja, culpada, despedaçada, porque eu acreditava que estava melhor.
Já tinha um relacionamento bacana na época, e quando acordei no outro dia, ele me perguntou porque eu não iria trabalhar. Eu só chorei, quieta. Minha mãe veio falar comigo e quando comecei a contar que o cara – que ela conhecia, tinha mexido comigo, ela me perguntou: “Mas você não deu barda para ele?”
Não, eu não dei. Procurei então um professor de jornalismo da época, e ele, muito imbecilmente me orientou a ficar quieta e procurar a psiquiatria da faculdade, porque isso mancharia minha carreira para sempre. O mesmo me disse um amigo. Como não teve penetração, o argumento é que seria mais difícil provar. Afinal, esse cara era conhecido no meio por ser um achacador e violento. Eu claro, senti muito medo. Sentia pavor. Um pavor que se transformou em doença, em síndrome do pânico, que me fez formar em regime domiciliar, fingindo para o mundo que estava tudo bem, viver mesmo depois de formada com benefício do INSS e presa em meu corpo, que só começou a engordar.
As coisas degringolaram de tal forma, que eu, só fui afundando cada vez mais em relacionamentos nocivos, a ponto que me casei com alguém que também tinha passado pelo mesmo trauma. Afinal, ele me entenderia e eu o entendia. Está na cara que não deu certo né?
Muito tempo se passou e eu reencontrei esse homem. Quando chegou perto de mim, eu falei: “Se você falar comigo eu te mato com minhas próprias mãos” e ele se dedicou a denegrir o meu nome, numa tentativa machista de me colocar como alguém indigna de crédito, mas ele sabia que eu um dia criaria coragem e o denunciaria. Não deu tempo. Um dia, quando eu já estava casada com meu atual companheiro, já vivia em um corpo de 170 quilos, meu telefone tocou à 6h da manhã. Era minha mãe. Ela me disse: “Ele morreu”.
Ali, eu tive duas certezas: a que minha mãe acreditava em mim, e a que eu estava livre. E sim, a partir dai minha vida começou a mudar. Eu resolvi pela cirurgia – que foi adiada, mas aconteceu no tempo certo, eu consegui me livrar de fardos terríveis, e com muita terapia, continuo minha vida, sorrindo. Semana passada, durante o Grifater (um encontro de casais da Terceira Igreja Batista), onde também tive cura com Deus, e a oportunidade de realizar meu sonho romântico de chinelos, casando na igreja, com meu pastor me abençoando e meu marido me levando para a lua de mel.
Escrevo esse texto com lágrimas nos olhos, com um choro convulsivo e dolorido, mas escrevo para que o tribunal do júri popular, que hoje julga intensamente Beatriz, a moça que está vivendo dias nebulosos, consigam perceber quem sabe, que sim, foi estupro. E que mesmo que tenha sido uma festinha de gente descabeçada, o tribunal do júri popular não tem direito de julgar a adolescente, precisa sim, apurar os fatos e descobrir o que realmente aconteceu..
Ninguém sabe a história de Beatriz, mas eu por conhecer a minha, prefiro entender que no mundo de tantos santos, é tão difícil ser humano, que estupro se torna assunto necessário ser debatido, porque as mulheres continuam culpando outras mulheres e homens continuam se colocando como algozes em uma sociedade que ainda não entendeu que o machismo mata, seja o corpo ou a alma.
Beatriz – e tantas outras mulheres, subjugadas seja para serem aceitas, seja por se esconderem, ou porque tem vergonha, tem o mesmo direito que eu, de escreverem uma nova história. Penas que muitas, não tem a mesma sorte e morrem. Morrem de corpo ou de alma.
Sei que posso ser julgada – e serei, mas eu, Liziane Berrocal, pela primeira vez falando publicamente sobre estupro, já fui absolvida no principal tribunal, que é o da minha consciência.